Poema | Fernando José Karl

As plantas do casarão de Nietzsche

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Ilustração: Berje
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Certa manhã de 1900, quando acabou o ar nas narinas de Nietzsche,
todas as plantas do casarão escutavam as ragas de uma sombra.
A brisa árida soprava o longo bigode do filósofo alemão
que respirava por um leve cristal de abysse.
Nietzsche, antes de morrer, tentava ler uma ode hitita,
e só não conseguiu porque grãos de chuva
turvaram seus tímpanos à sombra do gramofone
onde, tortuoso, girava o Cello sonata opus 38, de Brahms.
Os olhos flutuantes de Nietzsche, calados de insânia,
imitavam bagas de vento imersas em música.
Na manhã em que respirou pela última vez,
o vazio se enfiou pelas frestas da veneziana,
o vazio leu nos olhos de Nietzsche
o exílio sem água e sem palavra de um filósofo morto.
Agora, morto, algo em Nietzsche cura surtos com sutras,
cura larvas com lavas vulcânicas.
Algo, em Nietzsche, faz com a pluma da alma
um rombo no casco do encouraçado Potemkin.
Algo, em Nietzsche, rompe a pedra mais dura,
esfrega teréns de música num bule de Braque.

Fernando José Karl, 57 anos, nasceu em Joinville (SC). Jornalista, roteirista de cinema, artista visual e poeta, foi redator e editor-assistente do suplemento de cultura Nicolau. Autor, entre outras obras, de Brisa em Bizâncio (poemas, 2002) e O livro perdido de Baroque Marina (Prêmio Cruz e Sousa 2010/Categoria Romance/Editora da UFSC) Vive em Curitiba (PR).