Poema | Fabrício Carpinejar

Marluce Reque

Todas as mulheres

Meu casaco não serve para nada,
não será travesseiro de minha viúva
nas pedras frias de uma escada,
não será guarda-chuva de minha viúva
em tempestades repentinas,
não será proteção dos ombros de minha viúva
nas saídas das festas.
É um casaco de morto, morrendo com o morto.
Assim como morrem comigo
as cadeiras ao meu redor.
Assim como morrem comigo
as boias de flores em minha volta,
que não me devolverão às margens.
Assim como morre comigo
o fogo dos candelabros.
Assim como morrem comigo
o medo dos trovões e o meu grito,
asas da água.
Assim como morrem comigo o nó da gravata e do estômago,
os percalços e as certezas.
Morrem comigo o alto e o mínimo, o baixo e o sublime.
Morrem comigo minha imagem, minha melhor versão,
minha decadência, minha agressividade,
meu suspiro, meu bocejo.
Eu perderei a mim definitivamente.
E perder não é falta de cuidado, é apenas perder.
Eu não me reconheço nesta pompa de ministro,
nos dosséis e flâmulas, nas bandejas de prata
e nos cálices de veneno,
nos discursos graves e nos cumprimentos formais.
Até pareço satisfeito e bonito.
Mas, de longe, todo morcego é um pássaro.
Eu me vejo de perto, por dentro.
Reparo em minhas pernas magras,
iguais a de meu pai,
ossudas, de canelas finas:
não iria mesmo longe.
Se eu pudesse rir, estaria debochando de minha aparência.
Da minha cabeça de anão, superior ao próprio corpo.
Do queixo pontiagudo escondido pela barba grisalha.
Do nariz sem forma alguma.
Minha vida não é uma folha em branco,
mas não entendo a minha letra.

Fabrício Carpinejar nasceu em 1972, em Caxias do Sul (RS). É poeta, cronista, jornalista e professor. Autor de 30 livros, entre poesia, crônicas, infantojuvenis e reportagem, atua como apresentador da TV Gazeta e TVCOM. Também é colunista do programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, e do jornal Zero Hora. Na poesia, publicou, entre outros, Um terno de pássaros ao sul (2000) e Cinco Marias (2004). Todas as mulheres marca seu retorno ao gênero depois de oito anos, desde Meu filho, minha filha (2007). Carpinejar vive em Porto Alegre (RS).

O poema publicado pelo Cândido faz parte do livro inédito de Fabrício Carpinejar, que será lançado no segundo semestre pela editora Bertrand Brasil.

Ilustração: Marluce Ruque