Poema | Etel Frota

Lira dos cinquent'etantos

     Ilustração: José Aguiar
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Contrariando todos os oráculos e a previsão do tempo,
reaprendiz de tudo: reenfoco a mirada, reequilibro-me na
amurada — beirada do barranco. Que pode muito bem ser a
mesma beirada do oceano, depende de onde se olha. Depende
de com que olho se olha. Haja ângulo.

Reencabaço-me, para melhor me dar ao meu amor. Reforjo-me
donzela. Redonzelo-me. Refaço-me puta sem pecado, retomada
de compaixão por todos os homens do mundo, suas premências
e desejos. Haja tesão.

E assim — dia não dia sim — me re-doo em abraço, em comida,
em poema, em canção. Em arte, essa óssea parte do ofício. Haja
transpiração.

Resseco de novo os olhos, boto maquiagem, pra novamente
poder chorar minhas saudades. Minhas ausências, como as
chorei no primeiro dia delas, e as chorarei até o último dos meus.
Toda borrada, me refaço um misto de santa profana e palhaço
triste. Porque tristes são picadeiros, andores e paus-ocos. Triste
é a vida, que a arte imita e teima em querer consertar. Haja
pretensão.

E tanto limpo os olhos, que acabam me faltando lágrimas,
 secreções aquosas e outros lubrificantes. Tempos de secura.
   Cada marca insiste em querer permanecer pra sempre na
     minha pele. Diário indelével. Haja soja. Haja boas lembranças
                e bons humores. 

Visto de novo o avental todo sujo de ovo.
Cozinho quitutes, poucas vezes. Nas
outras muitas, aqueço congelados
— mas com tal empenho e apuro
estético, que todos acreditam
na farsa, e lambem os beiços, e
mais uma vez me fazem feliz, me
reinventam dona benta e fingem
nem notar minhas unhas feitas. Haja
apetite. E assim sou feliz, porque feliz
me querem. 

Rediscípula, na frente do mar — ...ah,
haja mar em frente, areia sob os
pés e o sol na cabeça... — pratico
com capricho meus ásanas. Nessa
manhã, como em todas as manhãs
em que namasteio, meu coração
germinado acaba virando massa de
pão.
Reiludo-me: quem sabe possa ter cura a
fome? Haja santosha.


Etel Frota nasceu em Cornélio Procópio (PR), em 1952. Estudou Medicina e atuou como clínica geral por quase duas décadas. Começou a escrever depois dos 40 anos. Em 2002 lançou Artigo oitavo, livro/CD de poesia escrita, falada e cantada. Sua produção como letrista de canções abrange uma enorme gama de gêneros musicais — do erudito à música caipira. Em 2017 lançou seu primeiro romance, O herói provisório. Vive em Curitiba (PR).