Poema | Alexandre Gaioto

Algo em você


há algo em você
que não cabe na chuva
que devora todas as vísceras
que não respeita os besouros
que rói calafrios
que não se encanta com a erudição
dos caramujos


há algo em você
que não derrete na grama
que mama bilirrubina
que não flutua na árvore
que ensurdece o fígado
que multiplica os linfócitos típicos


há algo em você
que não gosta do Dylan
que não perdoa Modigliani
que nunca leu Baude

laire
que não canta com as cotias
que não se espanta

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com o ligeiro
rasante da corruíra

há algo em você

que repete os mesmos verbos
que precisa de adjetivos
que força a rima no poe

ma

que sempre soa excessivo
que ignora as conjunções

adversativas


há algo em você
que eu quero muito odiar
que eu nunca consigo odiar

Quem diria?


ainda ouço comovido
suas orelhas tão tímidas
no lençol daquela manhã
de um hotel em Curitiba
quando você disse pela primeira vez
algumas horas antes
boa noite amor
depois de tantas vozes abafadas
e uma e outra garrafa de vinho
quem diria?
mesmo agora na casa
(que está à venda)
e nem está tão fria como

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naquela manhã de Curitiba
suas orelhas
discretamente
ainda me comovem
feito um pinguim-das-galápogos

catatônico diante das geleiras


Um dia


um dia quando ficarmos velhinhos
e você reclamar da coluna
como enxergar nessas letras
minúsculas esse amor todo?
vou finalmente preparar o seu café
com menos açúcar
mas
enquanto isso
são três colheres regadas a
mascavo
jamais adoçante



Alexandre Gaioto

Ilustrações: Deivid Almeida