Perfil do leitor | Uyara Torrente

Refúgio na ficção

Criada entre poetas, a vocalista da Banda Mais Bonita da Cidade revela que gosta mesmo é de ler contos, especialmente os de J.D. Salinger e Miranda July


Omar Godoy

Uyara

(Foto: Tainá Azeredo)

Os habitantes de Paranavaí, no noroeste paranaense, costumam dizer que moram na “Cidade Poesia”. O apelido surgiu na década de 1960, com a criação e consolidação de um festival anual que até hoje mexe com a cena cultural do município. Prestes a realizar sua 50ª edição, o Femup (Festival de Música e Poesia de Paranavaí) já formou pelo menos quatro gerações de cantores, músicos e escritores. Uma das “crias” desse ambiente é a paranavaiense mais famosa do Brasil nos dias de hoje: Uyara Torrente, 28 anos, vocalista da Banda Mais Bonita da Cidade (do hit “Oração”).

Uyara, que já participou do Femup e foi premiada, é filha de Dorival Torrente, um dos principais agitadores culturais da cidade. Conhecido por sua atuação no Gralha Azul (conjunto musical que resgata temas e sonoridades paranaenses) e no Teatro Estudantil de Paranavaí (grupo na ativa há mais de 30 anos), ele também é lembrado pela habilidade na declamação de poemas — uma tradição local. “Meu pai consegue ficar uma hora declamando sem parar. E sabe tudo de cor. Lembro dele recitando textos longuíssimos do Patativa do Assaré”, diz a atriz e cantora, radicada em Curitiba desde o ingresso no curso de Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná (FAP).

Ela conta que, além de ouvir poemas em casa, vivia rodeada de livros. A maioria, como se pode imaginar, de poesia. “Tínhamos as obras completas do Vinicius, do Drummond, do Manoel de Barros... Mas só me dei conta da quantidade de livro que a gente tinha quando fomos assaltados uma vez. Os ladrões invadiram a casa quando não estávamos e bagunçaram tudo. Quando chegamos, a primeira coisa que me chamou a atenção foi aquele monte de livro jogado no chão”, lembra.

Uyara, no entanto, não é “fissurada” em poesia, como ela mesma diz. Admira os autores clássicos citados acima e contemporâneos como Fabrício Noronha, Pedro Rocha, Luiz Felipe Leprevost e Vitor Paiva (seu ex-namorado), mas gosta mesmo é de ler ficção. E, de preferência, contos. Tem dois escritores de cabeceira, ambos norte- americanos: J.D. Salinger e Miranda July. “O que me atrai no Salinger é a maneira como ele entrelaça os personagens em todos os livros. A obra dele é toda costurada, e eu fico imaginando como seria se cada personagem daquela família tivesse seu próprio livro.”

A paixão por July (também cineasta, atriz e artista visual) é mais intensa. “Ela mudou a minha vida. Um livro como É claro que você sabe do que estou falando consegue despertar sensações que vão do grotesco ao sublime”, afirma. Para Uyara, o mundo anda “acelerado, doido, duro”, e as pessoas deixaram de se entregar. Nesse sentido, a obra da autora americana representa uma espécie de “resgate do afeto”. “As personagens dela estão sempre tentando se conectar com coisas concretas, estão sempre tentando encontrar um chão. Mesmo se for por caminhos estranhos, bizarros.”

Não à toa, o “afeto” é um dos temas centrais do ideário da Banda Mais Bonita e de toda uma geração de artistas que está deixando sua marca na cultura de Curitiba. “Éramos só um grupo de amigos da FAP, a maioria vinda do interior, de cidades quentes, onde se anda à vontade, descalço, com pouca roupa. Só fui saber que isso era coisa de bicho grilo quando cheguei aqui na capital”, conta. “Ser maldito, rock and roll, ‘pau na mesa’ também é legal. Mas a gente não era assim, sentia falta das coisas mais ‘ensolaradas’ da vida, de um respiro. Se abraçar um amigo no Torto (bar do centro da cidade que virou ponto de encontro dessa turma) ou usar flor no cabelo é coisa de hippie, de fofo, então eu sou tudo isso com orgulho”, completa.

Mas nem só de sol vive a artista, que também desenvolve um trabalho como atriz com a “sombria” Companhia Vigor Mortis — cujos filmes e espetáculos teatrais combinam humor negro, terror e referências trash. Depois de atuar no longa-metragem Nervo craniano zero, ela agora ensaia para o próximo espetáculo do grupo, Lobos nas paredes (um musical infantil, porém inspirado no universo dark do britânico Neil Gaiman, autor de Sandman e Coraline). “Viu como eu não sou só uma menina de vestido florido?”, brinca Uyara, que neste ano ainda está envolvida no lançado de um DVD ao vivo da Banda Mais Bonita e na gravação do terceiro álbum do grupo (fora a agenda de shows).

Em meio a tantos compromissos, Uyara tem encontrado refúgio nos livros do japonês Haruki Murakami. Terminou Minha querida Sputnik e agora se dedica a Após o anoitecer. “Ele cria situações malucas e surreais, mas ao mesmo tempo tão poéticas que você acaba ‘comprando’ aquela ideia.” Segundo ela, a descoberta de Murakami coincidiu com um momento de reaproximação com a leitura. “Percebi que a timeline do Facebook estava tomando todo o meu tempo livre em casa. Me senti emburrecida, fiquei desesperada e decidi sair da rede por uns tempos. Só assim consegui voltar a ler com tranquilidade”, afirma.