Perfil do leitor | Letícia Novaes

Encontros e entregas

“Multimídia”, a vocalista da dupla Letuce conta como a literatura influenciou todas as atividades artísticas que desenvolve


Omar Godoy

letícia novaes

Foto: Ana Alexandrino


Quem acompanha a cena musical independente conhece a carioca Letícia Novaes por causa da dupla Letuce, que desde 2007 circula pelos palcos do país mostrando seu rock emepebístico e romântico. Os conterrâneos, no entanto, já estão acostumados com uma artista mais versátil, que além de cantora, compositora e instrumentista é atriz, comediante, apresentadora, poeta, desenhista e, desde março, colunista do jornal O Globo. “Meu público obviamente aumentou e se diversificou depois da coluna. Outro dia recebi um e-mail de uma senhora de 72 anos, foi uma alegria”, comemora.

Questionada sobre seus cronistas preferidos, ela cita dois novatos e dois consagrados: Gregorio Duvivier, Fred Coelho, João Ubaldo Ribeiro e Luis Fernando Verissimo — com ênfase no último. “Sembre babei no Verissimo. Acabava de ler os textos dele e ficava pensando: ‘Que boa sacada, de gênio!’. Comecei a amá-lo ainda na escola, e percebia que me achavam adulta por isso”, conta Letícia, que antes de conhecer a obra do gaúcho já tinha um bom repertório de literatura infantojuvenil.

Estimulada a ler pela mãe, professora de francês, a artista de 33 anos lembra “com carinho” dos primeiros autores que a emocionaram: Fernanda Lopes de Almeida e Hans Christian Andersen. A primeira, psicóloga de formação, ajudou a renovar a ficção para crianças produzida no Brasil na década de 1970. São dela clássicos do gênero como A curiosidade premiada, O equilibrista, Soprinho e A fada que tinha ideias, entre outros.
“Meu pai tinha O equilibrista, e eu achava engraçado que uma pessoa adulta tivesse dado esse livro para ele, também adulto. Hoje em dia entendo e adoro dar livros infantis para os meus amigos.”

Andersen, que dispensa maiores descrições, também lhe foi apresentado pela mãe. “Ela sentiu que já estava na hora de eu ir além e me deu um livro com os contos dele. Foi muito impressionante para mim. A história da Pequena Sereia me devastou”, diz. Outro conto do dinamarquês, “O rouxinol”, rendeu sua primeira composição. “Acabei de ler e me senti tão inspirada que deitei e cantarolei uns versos de que me lembro até hoje.”

A descoberta seguinte foi a poesia. Aos 13 anos, em 1995, ganhou de presente da mãe (sempre ela) uma Agenda da Tribo, publicação anual que traz um poema em cada página. Criado nos anos 1990, o projeto (atualmente vendido como Livro da Tribo) é responsável por apresentar o gênero a milhares de brasileiros. “Foi ali que conheci Paulo Leminski, Alice Ruiz, Ulisses Tavares, Leila Miccolis, Adélia Lopes. Era uma galera bem anarquista e diferente do meu mundo”, lembra a artista, que anos mais tarde chegou a ter um texto publicado na coletânea. “Uma adolescente não saberia como entrar numa livraria e pedir Leminski. Ainda bem que minha mãe pisciana sacou que uma agenda com poesia cairia bem para a filha esquisita”, completa.

Quando se tornou um pouco mais independente, Letícia começou a frequentar livrarias sozinha e passar horas folheando. Nessa época, teve “encontros”, como ela gosta de dizer, com alguns dos grandes romancistas brasileiros e estrangeiros. “Um bom romance me transporta. Vira meu amigo. Sinto saudade, choro, me entrego”, afirma. Muitos desses escritores, poetas ou ficcionistas, hoje são influência assumida em sua trajetória artística: Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Ana Cristina César, Rosa Montero, Sylvia Plath, Adélia Prado.

Entre os contemporâneos, a atriz formada pela Casa de Artes de Laranjeiras (CAL) destaca Bruna Beber, André Dahmer (“Cartunista, mas com poemas estilhaçantes”), Natércia Pontes, Gabriel Pardal, Keli Freitas, Maria Rezende e seus amigos do fanzine Ornitorrinco (do qual é colaboradora). Coincidência ou não, a grande maioria dos nomes citados ao longo da entrevista é de mulheres. Seria uma inclinação consciente? “Acho que, por acaso astral, essas pessoas me emocionaram mais. Mas não acredito em literatura feminina propriamente dita. De qualquer forma, claro que é maravilhoso saber que cada vez mais mulheres estão sendo publicadas”, explica.

Ela mesma se prepara para lançar o primeiro livro, Zaralha — Abri minha pasta (Editora Guarda-Chuva), uma reunião de “poemas, desenhos, brincadeiras em toalhas de mesa de bar, delírios imagéticos, horóscopos macabros e dislexias cometidas em exercícios da escola”. Como o projeto ficou caro, está passando por um processo de financiamento coletivo no site Catarse, especializado no sistema de crowdfunding. Ou seja: caberá ao público pagar pelo material antes da publicação. “Mas o preço do livro está ótimo, R$ 35 para receber em casa. E está ficando lindo, estou animadíssima”, afirma, sem medo de fazer o comercial.