Perfil do leitor | Anna Muylaert

A arte da ironia

A diretora de Durval Discos e É proibido fumar revela que seus filmes recebem influências do estilo literário de Machado de Assis e Nelson Rodrigues


Omar Godoy

Apesar de ter vários livros infantis publicados, a cineasta Anna Muylaert acredita que não escreve literatura. “Acho que fui para outro caminho, que é o da escrita audiovisual, em que as palavras são mero trampolim para a construção narrativa através de imagens”, diz a autora de títulos como No rabo do cometa e Gato e sapato, além de uma coleção inteira com novas histórias do Menino Maluquinho, de Ziraldo.

Anna
Seu território é mesmo o dos roteiros, que ela escreve o tempo todo. Seja para os próprios longas (Durval Discos, É proibido fumar, Chamada a cobrar), filmes de outros diretores (Xingu, Desmundo, O ano em que meus pais saíram de férias) e séries de televisão (Mundo da Lua, Castelo Rá-Tim-Bum, As Canalhas).

Ainda assim, Anna identifica uma certa influência literária em seus trabalhos autorais, mais especificamente de autores como Nelson Rodrigues e Machado de Assis. “A ironia deles é o que mais me atrai, me interessa. Entendo a ironia como uma crítica que, em vez de reclamar, ri. Portanto, Machado e Nelson são referências eternas, além, é claro, de diretores que trabalham com isso, como Kubrick, Irmãos Cohen, Woody Allen, etc.”, explica.

A diretora afirma que não tem vontade de transpor títulos da literatura brasileira para as telas, mas já colaborou como roteirista em adaptações realizadas por outros cineastas — como Desmundo, de Alain Fresnot, baseado no romance homônimo de Ana Miranda. “Você sempre tem que achar o pulo do gato no sentido da concisão. Filmes tendem a ser mais concisos que livros.”

Filha do jornalista Roberto Muylaert, a diretora cresceu com muitos livros em casa. Enquanto o pai gostava de obras sobre episódios históricos, a mãe, Celina, lia ficção “o dia inteiro”. Como era de se esperar, Anna logo se tornou uma leitora, e das mais curiosas. “Lia os livros indicados pela escola e também explorava outros assuntos. Pesquisava Darwin, História, ciências... Eu queria saber sobre tudo!”, conta.

O primeiro título que salta de sua memória afetiva é O gênio do crime, best-seller infantojuvenil de João Carlos Marinho. Mas a paixão literária inicial foi Fernando Sabino. “Acho que o primeiro livro que realmente mexeu comigo, me emocionou, foi O encontro marcado. Fiquei tocada e depois fui ler toda a obra dele”, revela a cineasta, que na adolescência também descobriu Thomas Mann (por influência da mãe) e o já citado Machado de Assis, seu preferido “da vida”.

Na literatura contemporânea, Anna acompanha a trajetória dos americanos Paul Auster e Sam Shepard. Entre os brasileiros, destaca o paulista Paulo Rodrigues, de quem leu À margem da linha, romance de 2001 que narra a jornada de dois irmãos em busca do pai desaparecido. “Amei a escrita dele. O personagem narrador é muito forte, vivo”, afirma.

Sua descoberta mais recente, no entanto, é o escritor e dramaturgo de origem húngara Sándor Márai (1900- 1989), conhecido pela crítica ao comunismo e habilidade em relacionar o perfil psicológico dos personagens com o ambiente socioeconômico em que as tramas de desenvolvem. “Me apaixonei por ele. Li tudo o que temos disponível e estou sempre esperando lançamentos. Embora não seja contemporâneo, para mim é novidade”, diz, sobre o autor de As brasas, Confissões de um burguês, Libertação e De verdade, entre outros.

Atualmente, Anna trabalha em dois projetos de longa-metragem. Em fase de filmagem, Que hora ela volta? traz Regina Casé no papel de uma empregada doméstica que reencontra a filha deixada na infância. Ainda neste ano, ela também roda Mãe só há uma, história de um adolescente que descobre não ser exatamente quem pensava que era. “Meus filmes sempre saem de experiências pessoais, por isso não penso em adaptar um grande livro brasileiro para o cinema”, afirma.