Perfil do leitor | André Dahmer

“A poesia é elástica”

Um dos cartunistas mais “compartilhados” da geração surgida na internet revela seu interesse por poetas brasileiros de diversos estilos


Omar Godoy

É difícil navegar pelas redes sociais e não esbarrar em um desenho do cartunista carioca André Dahmer (criador de séries como Malvados, Quadrinhos dos anos 10, Rei Emir e Apóstolos). Mas grande parte dos fãs que compartilham diariamente suas tiras, charges e ilustrações não sabe que o artista desenvolve um trabalho paralelo na literatura. Prestes a lançar o terceiro livro de poemas, Dahmer está cada vez mais determinado a se firmar como poeta, nem que seja para ser lembrado como tal depois de morrer — como ele mesmo brinca. “Acho indigno ser enterrado apenas como cartunista”, diz, bem humorado.

Conhecido por sua abordagem ao mesmo tempo irônica e reflexiva da sociedade contemporânea, Dahmer conta que teve uma formação “humanista” em casa. Filho e irmão de acadêmicos, alguns deles ligados à área de Direitos Humanos, cresceu ouvindo os papos sérios dos doutores da família. “Eu sou o único que ‘não estudou’ e foi para as artes, onde se aprende as coisas de outras formas. E até hoje, nos almoços, quando tento entrar num assunto, eles me dizem: ‘Calma, André, você precisa ler mais sobre isso.’”

A poesia e a literatura de ficção, portanto, não tinham muito espaço naquele lar lotado de volumes sobre Sociologia, História e afins. Tanto que sua primeira lembrança literária é 1964-1984: 20 anos de prontidão, coletânea de charges produzidas por Ziraldo sobre o período da ditadura militar. “Meus pais, percebendo que eu gostava de desenhar, me deram esse livro quando eu tinha uns 10 anos, junto com O menino maluquinho. Não tinha muita noção do que se tratava, só ficava namorando os desenhos”, conta o artista, que nos anos seguintes também curtiu as coleções e clássicos infantojuvenis indicados pela escola (de pronto, cita O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e A bolsa amarela, de Lygia Bojunga).

Em 1986, quando tinha 12 anos (Dahmer completa 40 neste mês de setembro), teve seu primeiro contato com uma obra adulta. Seus pais deixaram na mesa da sala o então recém-lançado — e comentadíssimo — Brasil nunca mais, resumo de uma pesquisa que revelou a extensão da repressão política e da tortura no Brasil durante os governos militares. “Jamais deveria ter lido aquilo, foi um impacto muito grande. Fiquei anos sem contar para os meus pais que tinha lido.

No início da juventude, após um breve flerte com títulos de Marcelo Rubens Paiva, mergulhou na filosofia dita pessimista de Schopenhauer e Nietzsche — que hoje ele repudia. “Para mim, esse discurso de ‘homem superior’, de ‘vontade de poder’, está totalmente ultrapassado. Não vou julgar um homem do século XIX, mas acredito que esses valores não podem ser adotados no mundo atual. Sou um otimista. Acho a filosofia da estética bem mais interessante.”

A poesia, enfim, foi “descoberta” na época da faculdade de Desenho Industrial. Dahmer, que sempre desenhou e escrevia desde os 15 anos, envolveu-se com a turma fanzineira da PUC-Rio e, pouco depois, foi levado por um amigo ao já lendário evento carioca CEP 20.000. Criado em 1990 pelos poetas Chacal e Guilherme Zarvos, o “sarau multimídia mensal” marcou época ao aproximar literatura, teatro, música e performance. Mais que isso: revelou uma geração inteira de artistas plásticos, escritores e jornalistas (Pedro Luís, Michel Melamed, Viviane Mosé, Cabelo, Los Hermanos, etc.). “Hoje eu seria um designer profissional se não fosse pela coragem daqueles malucos todos”, confessa.

De lá para cá, o cartunista vem acrescentando novos nomes a sua galeria de poetas preferidos. Durante a entrevista, ele cita de Cruz e Souza a Eucanaã Ferraz, passando por Paulo Leminski, Ferreira Gullar, Augusto dos Anjos, Paulo Scott. “A poesia é muito elástica. Você tem a delicadeza de um Manuel Bandeira, que fala do passarinho, e a violência de um Roberto Piva, que mostra o lado paranoico de São Paulo”, diz o artista, que praticamente não lê ficção há dois anos.

dahmer

Livros de quadrinistas, ele leu poucos. “Sou cartunista só há 10 anos, entrei nessa porque era uma maneira fácil e rápida de dar vazão à escrita e ao desenho. Antes de começar, conhecia alguma coisa de Chiclete com banana, Crumb, Laerte. Mais de folhear na casa de amigos. Cheguei tarde e sem referências nesse meio, não fui muito ‘contaminado’”, afirma Dahmer, que já tem nove volumes publicados — sete de quadrinhos e dois de poesia, Ninguém muda ninguém (2010) e Minha alma anagrama de lama (2013).

Com lançamento previsto para outubro pela Lote 42, seu terceiro livro de poemas é marcado por um certo risco. Pela primeira vez, os textos não virão acompanhados de imagens. “Meus amigos de verdade, aqueles que não ficam me dando tapinhas nas costas, cobraram: ‘Dessa vez não vai ter desenhozinho, né?’, ‘Você vai assumir essa parada como poesia, certo?’. Resolvi encarar e acho que este é o meu livro mais maduro”, diz. Sendo assim, o título é apropriado: A coragem do primeiro pássaro. “Esse nome é no sentido evolucionista mesmo, do primeiro pássaro que conseguiu voar”, explica.


Foto: Bruno Stock