Perfil do Leitor: Roger Moreira

Prosa e rock
Roger


Roger Moreira escreveu algumas das letras mais inteligentes do rock brasileiro dos anos 1980, mas sua capacidade de articular as palavras não vem somente de seu QI elevado, mas também de algo bem mais prosaico: a literatura

Felipe Kryminice


Quando a literatura transborda, vira música. É o que sugere a trajetória de leitor de Roger Moreira, vocalista da banda paulista Ultraje a Rigor. O cantor aprendeu a ler sozinho, quando tinha apenas três anos. O músico lembra que suas primeiras leituras foram uma coleção de contos de Hans Christian Andersen, fábulas de Ésopo, Irmãos Grimm e Jean de La Fontaine. “Apenas ler já era agradável. Não procurava nada, com tão pouca idade. Mas lembro que gostava da fantasia.”

Os anos se passaram e as pequenas fábulas deram lugar a exemplares da literatura clássica e contemporânea, além da leitura fiel de periódicos. Algumas décadas, centenas de shows e dezenas de discos depois, os hábitos de leitura ainda são os mesmos: Roger dedica as duas primeiras horas do seu dia à leitura de blogs e sites noticiosos. Leitor assíduo de jornal, Roger acha que a gênese de suas canções, cheias de critica social bem-humorada, está diretamente relacionada com sua trajetória de leitor. “Sem dúvida essa característica se deve à minha formação na leitura. Leitor de tudo: livros, revistas, gibis, jornais, letras de músicas, poesia...”

Roger nasceu muito antes da revolução digital encabeçada pelos nerds do Vale do Silício — a turma de Gates e Jobs —, mas sua interação com a tecnologia é tão natural quanto a de qualquer jovem da geração Y. Tanto é que os livros “encadernados e com poucas gravuras” perderam espaço na preferência do cantor Roger para suportes que permitem a leitura de livros digitais, os ainda pouco populares e-books. Em tempos hightech, o músico só se rende ao velho formato do livro quando realmente não há outra opção. “Prefiro as versões digitais, a não ser quando elas não existem, como no caso de Minha fama de mau, do Erasmo Carlos.”

Mesmo com a sempre agitada agenda de shows e a participação do Ultraje a Rigor em um talk show na televisão, Roger ainda se mantém um leitor fiel, sempre encontrado tempo para ler. “É difícil achar tempo. Mas estou lendo aos poucos as biografias de Steve Jobs, Erasmo Carlos, Ozzy e Keith Richards. Também estou lendo um livro chamado You're not so smart, sobre o funcionamento do cérebro, e relendo [Aldous] Huxley.”

No democrático e eclético iPad do cantor, Jorge Amado divide espaço com livros de psicologia. As crônicas de Fernando Sabino e Luis Fernando Verissimo fazem companhia a obras de George Orwell, como 1984 e A revolução dos bichos. E ainda há lugar para biografias, livros de filosofia e clássicos como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Mas como conciliar as leituras tão distintas desta lista excêntrica? Roger tem uma explicação: é que chama de “homeopatia literária”. “Também acabei de ler um livro de Fred Stoller, ator e roteirista de Seinfeld, chamado My Seinfeld year. Mas é tudo em gotas.”

Literatura e Música

Ao longo dos séculos, literatura e música sempre andaram juntas. Para ficar em nosso quintal, é só lembrar do clássico “Geni e o Zeppelin”, a música de Chico Buarque que é frequentemente comparada a “Bola de sebo”, o conto de Guy de Maupassant, e que já foi tema de diversas teses acadêmicas. Nas últimas décadas, o rock também flertou com a prosa, com vários grupos se dedicando a compor álbuns inteiros inspirados em livros. Um dos exemplos mais conhecidos dessa combinação é o disco Animals, da banda Pink Floyd, gravado em 1977 e que foi baseado em A revolução dos bichos, clássico do britânico George Orwell.

O Ultraje a Rigor de Roger Moreira nunca partiu de um livro para construir músicas ou álbuns, mas as letras bem sacadas, com construções verbais mais complexas e jogos de linguagens, como em “Inútil” (A gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nóis é indigente) carregam consigo um indissociável vestígio literário. Outros hits da banda fizeram mais do que colar na cabeça dos jovens dos anos 1980. Fizeram pensar, o que é um grande feito no universo do rock. Algumas letras escritas por Roger viraram tema de discussão e foram parar em comerciais da TV, como a egocêntrica “Eu me amo” e “Rebelde sem causa”. Meus dois pais me tratam muito bem/ (O que é que você tem que não fala com ninguém?)/Meus dois pais me dão muito carinho/ (Então por que você se sente sempre tão sozinho?)/ Meus dois pais me compreendem totalmente/(Como é que "cê" se sente, desabafa aqui com a gente!)/ Meus dois pais me dão apoio moral/(Não dá pra ser legal, só pode ficar mal!).

Roger acredita que há similaridades entre as criações literárias e musicais, de um modo geral. O compositor pensa que ambas as composições são variações da mesma coisa, ou, ao menos, deveriam ser. Por outro lado, não consegue destacar alguma obra ou autor que tenha semelhança com as letras do Ultraje. E, evocando a autenticidade inerente ao grandes artistas, Roger explica: “se há alguma semelhança com algum escritor, foi sem querer. Procuro ter meu próprio estilo. Se eu fosse escritor, seria eu mesmo.”