Perfil do Leitor | Marcelo Nova

Pautado pelo rock

Fã de quadrinhos até a adolescência, o músico baiano descobriu a literatura a partir das referências contidas em seus discos preferidos

Omar Godoy

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“Meu trabalho vem do texto. Tenho 18 álbuns gravados e nunca compus uma canção a partir da melodia. Sempre começo pela letra. A única canção que eu comecei pela música está no assobio até hoje, não consegui terminar”, conta o baiano Marcelo Nova, que neste mês completa 62 anos.

Com um disco novo na praça, 12 fêmeas, ele afirma que nunca combinou tão bem letra e música. “Sentia que meu texto brigava com o som, com aquela paulada de bateria e guitarra para todo lado. Desta vez, com a ajuda do meu filho Drake [guitarrista e produtor], tirei um pouco o pé do ataque e consegui um equilíbrio entre tempestade e calmaria.”

Leitor do tipo que precisa de isolamento total para curtir um livro, Nova afirma que a literatura sempre foi uma influência decisiva em sua obra. “Ler é ampliar o pensamento, é fustigar o cérebro. Sendo assim, qualquer leitura pode te influenciar de alguma forma”, diz o artista, que apareceu para o Brasil durante o estouro do rock nacional dos anos 1980. Um modismo musical como tantos outros, mas que deixou ao menos um legado estético: letras muito acima da média em se tratando do cenário pop.

“De alguma maneira, conseguimos preencher um vazio de identificação que existia antes de nós. Havia uma necessidade de ser imediato, urgente, realista. ‘Inútil’, do Ultraje a Rigor, por exemplo, traduz o Brasil como ele é, e não como o Geraldo Vandré queria que ele fosse”, ironiza.

Para ele, a “letra de rock brasileiro” como conhecemos hoje é invenção de seu ídolo e parceiro Raul Seixas. “A primeira vez que eu me identifiquei com um texto de música nacional foi quando ouvi ‘Ouro de Tolo’”, revela. Nova, contudo, garante que não tem má vontade com a MPB. “Eu só não interiorizei esse orgulho auriverde que a maioria tem. Aos 9 anos, ouvi Little Richards pela primeira vez e fui possuído de forma orgânica por aquele ritmo, que fazia um contraponto com a placidez sonora da bossa nova e do Frank Sinatra que escutavam na minha casa. A partir daí, o rock and roll mudou a minha vida para sempre.”

E foi o rock que o levou à literatura, ainda na adolescência. Leitor de quadrinhos e dos clássicos obrigatórios da escola, Marcelo Nova começou a correr atrás dos livros citados por seus artistas preferidos. O primeiro que leu de cabo a rabo foi a As portas da percepção (Aldous Huxley), que inspirou Jim Morrison a batizar seu The Doors. “Tinha 15 anos quando li, não entendi metade do que estava escrito. Mas fiquei curioso para entender, não desisti e fui pesquisar sobre o assunto em outras fontes, como Timothy Leary”, lembra.

Outro livro marcante dessa fase foi O outsider: O drama moderno da alienação e da criação, um longo ensaio em que o escritor e filósofo autodidata Colin Wilson analisa a vida e a obra de artistas controversos que viram o mundo de uma maneira diferente (Nijinski, Van Gogh, Dostoiévski, William Blake, etc.). “Ele falava do Herman Hesse, eu já associava O lobo da estepe com o [grupo] Steppenwolf e corria para ler.”

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“ Virou uma moda internacional, agora todo roqueiro escreve livro ou ganha biografia. Não tenho talento para produzir o grande romance brasileiro, então prefiro não escrever nada.”








Seu cânone pessoal ainda inclui Shakespeare (“Pode ser o maior clichê do mundo, mas o cara definiu tudo”), Oscar Wilde (“Imbatível na ironia e no sarcasmo”), Raymond Chandler (“O Lou Reed disse que gostava dele e eu fui direto para a seção de mistério da livraria”) e Marcel Proust (“A introdução de No caminho de Swann mexeu com todos os meus sentidos”).

Mas nada se compara à devoção de Nova ao sujeito que levou a literatura para a música popular — e vice-versa. “Bob Dylan arrebentou com tudo. Ainda lembro do impacto que foi ouvir ‘Like a Rolling Stone’ no rádio pela primeira vez. Letras gigantescas, métricas estranhas, vocabulário rico, ideias complexas. O cara ainda deixa todos nós para trás”, afirma o músico, que já leu várias biografias de Dylan.

Um livro sobre ele próprio, no entanto, está fora dos planos (pelo menos por enquanto). “Virou uma moda internacional, agora todo roqueiro escreve livro ou ganha biografia. Não tenho talento para produzir o grande romance brasileiro, então prefiro não escrever nada”, diz o baiano, que vira e mexe é procurado por jornalistas interessados em documentar sua história. “Digo para eles que talvez eu não morra logo, que quando eu for mais velho terei mais assunto para falar.” A única proposta que realmente o agradou veio do jornalista André Barcinski, autor de Maldito: A vida e o cinema de José Mojica Marins. Os dois conversam há algum tempo sobre o assunto, mas Nova sempre encerra o papo com a mesma pergunta: “Quem vai bancar os advogados? Porque, se esse livro acontecer, vem chumbo grosso por aí”.