Perfil do Leitor | Alex Antunes

Entre a lei e a transgressão

O jornalista, músico, escritor e curador revela seu percurso literário guiado por uma ética contracultural

Omar Godoy

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Alex Antunes admite que não leu muitos autores novos nos últimos dez anos. E os “culpados” foram dois escritores que fazem o que ele chama de “ficção científica menos científica e mais psíquica”. “Quando li Reconhecimento de padrões, do William Gibson, e Terroristas do milênio, do J. G. Ballard, em 2003, entendi que a literatura de especulação psicossocial havia se enganchado diretamente com a realidade presente, que as possibilidades de ativismo e intervenção direta estavam abertas ou por se abrir como no final da década de 1960, e iniciei um ciclo de viagens e produções que me afastaram das leituras”, diz.

Até então, Antunes era conhecido por sua atuação no jornalismo cultural (trabalhou em quase todos os grandes veículos de São Paulo), na música (produziu discos e liderou bandas como Akira S e As Garotas que Erraram e Shiva Las Vegas) e na literatura (publicou o cult A estratégia de Lilith, que mais tarde virou o filme Augustas) — sem contar seu interesse por xamanismo e rituais de transe. Mas o insight proporcionado pela dupla Gibson/Ballard o levou mais longe, e hoje o coautor do hit “Atropelamento e fuga” (eternizado pelo grupo Skowa e a Máfia) é mais reconhecido como um misto de guru contracultural e curador de festivais, que circula o país permanentemente trocando ideias e tentando entender a contemporaneidade.

Logo após a última edição da Virada Cultural de São Paulo, da qual participou da curadoria, Alex Antunes conversou com a reportagem do Cândido sobre sua trajetória como leitor. Começou lembrando que sua primeira cama, onde dormiu até os 10 anos, era cercada por estantes com livros. “Meu pai tinha interesse em política e humanidades, e comprava livros com frequência. Isso fez com que eu lesse bem cedo obras cujas capas ou títulos me atraíam”, conta o jornalista, que, como boa parte das crianças de sua geração (ele tem 53 anos), iniciou-se na literatura por meio da obra de Monteiro Lobato.

“Não defendo o Lobato irrestritamente na questão do racismo, mas sou um grande devedor dele. Principalmente pela introdução à mitologia grega, tema que viria a ser central na minha vida”, diz Antunes, que nessa época também virou rato de bibliotecas, devorou coleções de clássicos vendidas em bancas e espiou títulos mais adultos comprados pela mãe junto ao Círculo do Livro. “Fuçando nos livros da minha mãe, acabei lendo Prudência e a pílula, de Hugh Mills”, exemplifica.

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“A coisa do investigador freelancer que se equilibra em um espaço estreito entre a lei e a transgressão foi uma revelação para mim. Moralmente, sou um filhote do [Raymond] Chandler”













O primeiro grande impacto, no entanto, veio com a descoberta de Raymond Chandler. Aos 14 anos, ele leu, emprestado de uma tia, a coletânea de contos Pérolas dão azar e se encantou com a estética noir. Ou melhor, com a ética noir, como ele faz questão de deixar claro. “A coisa do investigador freelancer que se equilibra em um espaço estreito entre a lei e a transgressão foi uma revelação para mim. Moralmente, sou um filhote do Chandler”, afirma. Seu outro “pai” também surgiu nessa época: Jorge Amado, via Capitães de areia. “O livro tem uma abordagem bastante crua da tensão sexual entre os jovens. O termo ‘carapinha do sexo’ me assombra até hoje”, diverte-se.

Nos anos seguintes, seguiu firme no gênero policial (é fã de Patricia Highsmith e Georges Simenon) e mergulhou na “literatura psicanalítica de transgressão” de Philip Roth e Luke Rhinehart. Também se interessou, entre outros, por Hunter S. Thompson (leia making of de Medo e delírio em Las Vegas), Chris Simunek, Nick Tosches, Carlos Castañeda, Mario Henrique Leiria, J.D. Salinger. Este último, ele considera o “inventor do indie”. “Toda a ética indie noventista está lá, em embrião, em O apanhador no campo de centeio, de 1951”, teoriza.

Mas sua praia predileta parece ser mesmo a da tal “ficção científica menos científica e mais psíquica” — ou cyberpunk, como se convencionou classificar esse subgênero sci-fi com ênfase numa abordagem, digamos, mais sociocultural e distópica. “No começo dos anos 1990, tive um choque muito forte quando li Neuromancer, do William Gibson, que me introduziu outra dimensão dessa ética do franco-atirador, em sua versão mais atual, a cyberpunk. Nessa mesma fase, li A invasão divina, do Philip K. Dick, que descobriu uma dimensão psíquica muito mais interessante que a tecnológica. Virei pesquisador da obra dele imediatamente.”

Como se pode perceber, é a ética, e não a estética, que guia Antunes em suas reflexões e produções. Vide sua relação com a chamada literatura pop contemporânea. “Essa é uma mumunha mais recente, cuja ética não é a ética contracultural, e sim esse biombo nerd do ‘fazedor de listas’ afetivo Nick Hornby. Eu surfei um pouco nisso quando publiquei A estratégia de Lilith, em 2001, mas minha conexão é muito mais contracultural clássica, da passagem dos anos 1960 para os 1970”, explica.

Sem nenhum projeto de livro em andamento (“apenas apontamentos”), o curador termina a entrevista fazendo uma espécie de apelo aos leitores do Cândido. “Na minha adolescência, li um livro sulafricano que trata do caso sexual de um boer com uma jovem negra. Lembro muito especificamente da cena em que eles transam em um lugar ermo, dentro da Mercedes Benz dele. Mas esqueci para sempre o título, e toda e qualquer combinação de termos que eu introduza no Google conduz à literatura sociológica. Algum leitor faria ideia de que livro pode ser?”. Pedido registrado.