A literatura paranaense 07/02/2013 - 16:00
O escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli faz uma análise da manifestação literária no Paraná, citando os principais autores e obras
Existe uma literatura paranaense ou o mais apropriado é pensarmos em literatura no Paraná? Se recorrermos a Antonio Candido, ele indica que para haver uma literatura ela precisa ter “tendências universalistas e particularistas.” O mesmo crítico distingue manifestações literárias de literatura “propriamente dita, considerada aqui como sistema de obras ligadas por denominadores comuns.” Tanto no passado, como no presente, existe tal sistema aqui? E que denominadores comuns haveria entre os escritores de ontem e os de hoje?
Outro dado que o mesmo crítico nos propõe: a existência de um conjunto de produtores literários mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de públicos; um mecanismo transmissor (uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns a outros. Quanto ao conjunto de produtores, não há dúvida que o temos. Haja vista o bom número de escritores que produzem por aqui. Mas há um conjunto de receptores? Para pensarmos num dado concreto: a escola paranaense estuda nossos autores, como acontece, por exemplo, no Rio Grande do Sul? Ou simplesmente se submete ao esquema viciado das editoras (do mercado) que impinge certo número de escritores, sem a mínima preocupação com o rótulo de “paranaense”?
Para Antonio Candido, a literatura como sistema precisa de uma “interpretação das diferentes esferas da realidade.” Nossos autores têm em sua bagagem esta preocupação de olhar para nossa realidade, de procurar de um jeito ou de outro, pelo viés estético, interpretar quem somos, o que fazemos? Quando Curitiba ou outra cidade aparece como cenário, ela não passa disto, pano de fundo, sem que as sondas do autor penetrem nas camadas mais fundas da(s) cidade(s), não havendo intenção em trazer à tona as feições mais contraditórias do que nos constitui? Só para ficarmos num patamar visível: o que se escreve por estes recantos é essencialmente urbano, centrado no homem branco e burguês e em suas idiossincrasias. Onde está o campo? o negro? o gay? e o caldeirão de misturas étnicas que é um traço de nosso povo?
Antonio Candido afirma que “sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização” e “sob a perspectiva histórica” é necessário “um sistema articulado”, “conjuntos orgânicos”, “expressão da realidade local.” Em nosso meio literário, existiria tal sistema articulado? Procurando bem, que pontos de contato há entre os diversos autores de nosso Estado que possuem uma produção constante ou sazonal, criando aquele “conjunto de obras” a que o crítico se refere, não bastando para tanto, haver apenas certo número de escritores?
Nesta toada, por que e para que ser paranaense? Seria mesquinho demais para nossas cabeças coroadas. Estar no Paraná é apenas uma contingência, quando os olhos se voltam para os amplos horizontes do mundo, lá querendo chegar com uma literatura universalista e nunca particularista, o que seria um demérito que fatalmente levaria para um regionalismo que sequer faz sentido hoje em dia. Por outro lado, poderíamos ser paranaenses sem o ranço do regional, assim como os gaúchos são gaúchos e os nordestinos são nordestinos, com marcas específicas que os engrandecem e não os diminuem no cenário nacional?
Marco-zero
Quase sem dúvida, podemos dizer que o primeiro grande passo de nossa literatura está em Newton Sampaio (1913-1938). Morto em plena juventude, aos 24 anos, ele nos deixou uma obra pequena, mas de fôlego potente. No romance, nos legou Trapo, do qual publicou alguns trechos em periódicos da época e Dor, que ficou incompleto, sendo estampado no Correio dos Ferroviários. Tem também duas novelas, mas o marco principal de seus escritos está no conto, podendo ser considerado, entre nós, o precursor do conto urbano. E neste gênero, se destacam Irmandade (1938) e Contos do sertão paranaense (1939).
Irmandade, sendo uma obra-prima, é impactante. Os contos têm ação rarefeita, lidam com gente do interior e apresentam aquilo que podemos chamar de estética da secura, pela redução ao mínimo do que ele escreve. Há personagens com pretensas obras passadas, porém, estão presos a um presente sufocante e sempre adiando um sonho de realização para um futuro que nunca vem. “Cântico”, que é um poema em prosa de feição lírica, tem este efeito quebrado quando o narrador retoma a palavra e diz que o texto saiu um tanto “bolchevista” e, andando pela cidade, cria chaves poéticas para o que vê. Na narrativa “Castigo”, com um acento um tanto expressionista, encontramos um pai de vistas nubladas, alimentando desejos incestuosos pela sua filha, numa Sexta-feira Santa. Religiosidade e luxúria se irmanam num olhar que já perdeu o contorno das coisas.
De um modo geral, a ação dos diversos contos não desliza pelas páginas. Ela é dada em pequenos tópicos-relâmpagos, numa técnica de dizer o mínimo e nas entrelinhas o não-dito tem uma funcionalidade excepcional, em contos que são analógicos.
No subterrâneo das vidas o não- -ser, a agonia, a promiscuidade do cotidiano, até a luz sombria de “Inspiração”, um conto metalinguístico, em que Damião escreve, discute o seu texto e o uso adequado ou não do pleonasmo. A senha do mundo é o mundo suburbano e não seria exagero lançar pontes entre Newton Sampaio e Lúcio Cardoso. E, numa visada atrevida, este Irmandade, deve ter tido um impacto no primeiro Dalton Trevisan.
Um porto chamado Joaquim
Sem dúvida alguma, o segundo grande passo para a consolidação de nossa literatura é a revista Joaquim (1945-48). No seu primeiro número, traz o “Manifesto para não ser lido”, formado por citações que vão de Rilke a Verlaine. Um artigo sobre Poty, com autorretrato do artista. Alguns “Apontamentos para uma entrevista sobre teatro”. O poema “O Desespero da piedade”, de Vinicius de Morais. “Eucaris a dos olhos doces”, conto de Dalton e o primeiro trecho de um artigo de Erasmo Piloto sobre Tólstoi, entre outros.
Antes de Joaquim houve o que se pode chamar de geração romântica em que se destacam Fernando Amaro e Júlia da Costa, com seus dois livros: Flores dispersas (1967) e Bouquet de violetas (1868). Repudiada por seu marido, sofreu de demência no final da vida, vindo a falecer em 1911.
Outro dado que o mesmo crítico nos propõe: a existência de um conjunto de produtores literários mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de públicos; um mecanismo transmissor (uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns a outros. Quanto ao conjunto de produtores, não há dúvida que o temos. Haja vista o bom número de escritores que produzem por aqui. Mas há um conjunto de receptores? Para pensarmos num dado concreto: a escola paranaense estuda nossos autores, como acontece, por exemplo, no Rio Grande do Sul? Ou simplesmente se submete ao esquema viciado das editoras (do mercado) que impinge certo número de escritores, sem a mínima preocupação com o rótulo de “paranaense”?
Para Antonio Candido, a literatura como sistema precisa de uma “interpretação das diferentes esferas da realidade.” Nossos autores têm em sua bagagem esta preocupação de olhar para nossa realidade, de procurar de um jeito ou de outro, pelo viés estético, interpretar quem somos, o que fazemos? Quando Curitiba ou outra cidade aparece como cenário, ela não passa disto, pano de fundo, sem que as sondas do autor penetrem nas camadas mais fundas da(s) cidade(s), não havendo intenção em trazer à tona as feições mais contraditórias do que nos constitui? Só para ficarmos num patamar visível: o que se escreve por estes recantos é essencialmente urbano, centrado no homem branco e burguês e em suas idiossincrasias. Onde está o campo? o negro? o gay? e o caldeirão de misturas étnicas que é um traço de nosso povo?
Antonio Candido afirma que “sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização” e “sob a perspectiva histórica” é necessário “um sistema articulado”, “conjuntos orgânicos”, “expressão da realidade local.” Em nosso meio literário, existiria tal sistema articulado? Procurando bem, que pontos de contato há entre os diversos autores de nosso Estado que possuem uma produção constante ou sazonal, criando aquele “conjunto de obras” a que o crítico se refere, não bastando para tanto, haver apenas certo número de escritores?
Nesta toada, por que e para que ser paranaense? Seria mesquinho demais para nossas cabeças coroadas. Estar no Paraná é apenas uma contingência, quando os olhos se voltam para os amplos horizontes do mundo, lá querendo chegar com uma literatura universalista e nunca particularista, o que seria um demérito que fatalmente levaria para um regionalismo que sequer faz sentido hoje em dia. Por outro lado, poderíamos ser paranaenses sem o ranço do regional, assim como os gaúchos são gaúchos e os nordestinos são nordestinos, com marcas específicas que os engrandecem e não os diminuem no cenário nacional?
Marco-zero
Quase sem dúvida, podemos dizer que o primeiro grande passo de nossa literatura está em Newton Sampaio (1913-1938). Morto em plena juventude, aos 24 anos, ele nos deixou uma obra pequena, mas de fôlego potente. No romance, nos legou Trapo, do qual publicou alguns trechos em periódicos da época e Dor, que ficou incompleto, sendo estampado no Correio dos Ferroviários. Tem também duas novelas, mas o marco principal de seus escritos está no conto, podendo ser considerado, entre nós, o precursor do conto urbano. E neste gênero, se destacam Irmandade (1938) e Contos do sertão paranaense (1939).
Irmandade, sendo uma obra-prima, é impactante. Os contos têm ação rarefeita, lidam com gente do interior e apresentam aquilo que podemos chamar de estética da secura, pela redução ao mínimo do que ele escreve. Há personagens com pretensas obras passadas, porém, estão presos a um presente sufocante e sempre adiando um sonho de realização para um futuro que nunca vem. “Cântico”, que é um poema em prosa de feição lírica, tem este efeito quebrado quando o narrador retoma a palavra e diz que o texto saiu um tanto “bolchevista” e, andando pela cidade, cria chaves poéticas para o que vê. Na narrativa “Castigo”, com um acento um tanto expressionista, encontramos um pai de vistas nubladas, alimentando desejos incestuosos pela sua filha, numa Sexta-feira Santa. Religiosidade e luxúria se irmanam num olhar que já perdeu o contorno das coisas.
De um modo geral, a ação dos diversos contos não desliza pelas páginas. Ela é dada em pequenos tópicos-relâmpagos, numa técnica de dizer o mínimo e nas entrelinhas o não-dito tem uma funcionalidade excepcional, em contos que são analógicos.
No subterrâneo das vidas o não- -ser, a agonia, a promiscuidade do cotidiano, até a luz sombria de “Inspiração”, um conto metalinguístico, em que Damião escreve, discute o seu texto e o uso adequado ou não do pleonasmo. A senha do mundo é o mundo suburbano e não seria exagero lançar pontes entre Newton Sampaio e Lúcio Cardoso. E, numa visada atrevida, este Irmandade, deve ter tido um impacto no primeiro Dalton Trevisan.
Um porto chamado Joaquim
Sem dúvida alguma, o segundo grande passo para a consolidação de nossa literatura é a revista Joaquim (1945-48). No seu primeiro número, traz o “Manifesto para não ser lido”, formado por citações que vão de Rilke a Verlaine. Um artigo sobre Poty, com autorretrato do artista. Alguns “Apontamentos para uma entrevista sobre teatro”. O poema “O Desespero da piedade”, de Vinicius de Morais. “Eucaris a dos olhos doces”, conto de Dalton e o primeiro trecho de um artigo de Erasmo Piloto sobre Tólstoi, entre outros.
Antes de Joaquim houve o que se pode chamar de geração romântica em que se destacam Fernando Amaro e Júlia da Costa, com seus dois livros: Flores dispersas (1967) e Bouquet de violetas (1868). Repudiada por seu marido, sofreu de demência no final da vida, vindo a falecer em 1911.
Dalton, Snege: mestres
Autor de extensa obra, Dalton Trevisan trabalha com personagens que, digamos assim, estão a um grau zero da sexualidade, sobre a qual parece não incidir nenhum tipo de injunção social. São puro instinto, arrastados pela pulsão do gozo. Por outro lado, surgem os papéis sexuais, impulsionados pela teatralidade social. Entre um polo e outro, o sexo é apenas sexo, não gera nem plenitude, nem o absoluto, sendo que João e Maria, longe do exercício do encontro como complementação e implemento de vida, caem numa épica trivial de personagens que só encontram o vazio. Ou como diz Carlos Heitor Cony: “Dalton Trevisan não usa a literatura para salvar ou acusar o homem, apenas para aproximá- lo de nossa retina, mostrá-lo a nós mesmos, e através de diferentes planos, através de diferentes retratos, constatarmos que somos iguais a ele”. Na obra de Dalton, Eros anda à solta. Em Cemitério de elefantes, “está traçada (...) toda a problemática de tabus, amor e morte, toda a economia de sexo e violência que será recorrentemente retomada. Castrações e traumas, que permeiam o universo criado, estão em Cemitério de elefantes ainda latentes e a fala dos recalques que aflora é, sobretudo constituída pela violência. O discurso da perversão, dos comportamentos sexualmente desviantes, será mais explorado (...) em outros livros.”
Jamil Snege é outro destaque de primeira linha em nossa literatura. Dono de uma prosa lírico-irônica, Jamil é um dínamo de inovação, fazendo de sua prosa uma explosão e implosão de gêneros. Com uma obra não muito numerosa, o que nos deixou marca pela inventividade, pelos recursos surpreendentes de uma prosa inovadora, inquieta, insubmissa aos cânones, sempre a apontar novos caminhos. Destacamos Como eu se fiz por si mesmo, suas “memórias”, em que passa a limpo o percurso de sua vida, gargalhando, com aquele humor ferino que sempre o marcou. O insólito é seu campo de experimentação, predominando o absurdo em seus contos “em que as leis da física são rompidas”. Escrevendo com uma tintura simbólica, mergulha nas contradições e conflitos de nosso histrionismo cotidiano. Com um olho aceso no homem comum, desveste-o de suas ilusões, e marca com ferro em brasa o real cartesiano e traz outra dimensão para o mundo em que habitamos, enredados em nossas máscaras que ele desfaz com precisão cirúrgica.
Tezza, Gomes e Bueno
Em O filho eterno, Cristovão Tezza, debruçado sobre uma experiência pessoal, a recria pelo humor e por traços irônicos, enquanto, ao mesmo tempo se pergunta sobre o porquê da série de “fatos” que narra. O romance não deixa de ser uma reflexão sobre os inesperados da vida. Com uma obra já consolidada, que não precisa provar mais nada a ninguém, ultrapassando as fronteiras do Estado e a dicção provinciana/pessoal da “primeira fase” (até Juliano Pavollini), o autor trabalha com elegância e sutileza sua linguagem em romances centrados em figuras de intelectuais descentrados, em que a angústia pelo seu destino e sua prática existencial são a tônica. Outro autor que tem uma obra consolidada é Roberto Gomes. Desde a temática dos anos 1960 de Antes que o teto desabe, passando por questões político-sociais, como em Os dias do demônio, dando atenção ao mundo perdido da infância: Todas as casas, Roberto Gomes ainda se firma na sátira ao mundo acadêmico: Alegres memórias de um cadáver.
Também merece atenção especial Wilson Bueno. Certamente é aquele que, entre nós, atingiu a mais alta voltagem estética, já que manipula uma inovadora poética romanesca, capaz de apontar novos caminhos para este gênero, diluindo conceitos e trazendo à luz obras que, como Mar paraguayo, enaltecem a arte de escrever com seu arrojo do novíssimo. Com uma obra marcante desde Bolero´s Bar, até o póstumo Mano, a noite está velha, Wilson Bueno sempre mostrou-se inquieto e inventivo na busca de novos caminhos para a narrativa. Insuflando-lhe um espírito inovador, este escriba vai de encontro aos profetas que a todo momento aparecem decretando o fim do romance ou o fim da literatura.
Campana, Leminski e Luci
Gostaríamos de destacar também Fábio Campana, em especial o seu O guardador de fantasmas. Neste romance, o autor faz um mergulho no projeto revolucionário que não desfez o oco interior do personagem. O susto de acordar pela manhã estatelado de incompletude, os atritos abrindo covas de insatisfação. O sexo triste de quem busca complementação e encontra apenas a mecânica fisiológica dos sentidos. Massacrado pelo pai, massacrado pela ditadura, o personagem anda zonzo por um terreno turvo. Na cena da tortura, o autor consegue uma objetividade, uma frieza de quem demonstra o fato, sem envolver-se com ele. É como se o narrador se afastasse do que apresenta, lavando as mãos, não por covardia, mas por absoluta necessidade de, revelando as peças de um jogo maldito, deixar ao leitor a tarefa de colocar ali toda a carga significativa da própria cena.
Paulo Leminski. O artista com as garras enterradas no barro de todas as latitudes para dali tirar um modelo adequado ao seu dizer. Poeta, romancista, tradutor, ensaísta. Sempre polêmico. Mesmo após sua morte, a herança que nos deixou continua a provocar fissuras, como comprova a recentíssima publicação de Toda poesia que voltou a levantar a voz do coro dos descontentes. Inquieto, renovador, desmontou o cânone (por isto encontra tantos rivais) e, de Bashô a Mishima, criou sua dicção própria, usando filosofemas orientais e ironizando todos os medalhões. Nunca foi um conformista. Trilhou também nos ensaios um caminho muito pessoal e nele imprimiu o gosto próprio de mexer nas vacas sagradas para mostrar que trazia um pensamento renovador, em especial para a literatura.
Luci Collin é uma escritora em busca de inovações. Sob o influxo de Gertrud Stein, procura novas formulações para o conto, tanto que consta da antologia 25 mulheres de estão fazendo a nova literatura brasileira, organizada por Luiz Ruffato e publicada pela Record em 2004. Collin também se dedica à tradução. Nesta área, traduziu a inclassificável poeta irlandesa Eiléan Ní Chuillleanáin que implode nosso conceito de poesia. Traduzindo, também se destaca o trabalho que fez com e.e.cummings, vertendo para o português A cela enorme, livro publicado pela Editora da UFPR e único trabalho em prosa deste poeta mirabolante. Nos contos, nada de enredo, de digressões, de descrições. Seja em Precioso impreciso ou Inescritos, Luci Collin leva ao máximo a imprecisão e, ao mesmo tempo, tem algo do noveau roman francês: uma câmera captando objetivamente o mundo, sem se deter em coisa alguma, sem buscar a essência do que seja. Como vivemos num enorme shopping center, os narradores vão-nos mostrando um empilhamento de pequenos fatos e cenas, por trás das quais temos de adivinhar o que está sendo descrito. Mais que contos, são propostas, que chamam o leitor para dentro do seu universo e ali ele precisa montar os delineamentos construídos pela autora. Cerebrais, não cedem a um enredo de primeira montada e exigem que toda a inteligência do leitor seja chamada, para construir com os narradores a “história” que nunca é história, porque a autora sonda uma nova forma de ser do conto. Com frases aparentemente sem coadunação, apenas jogadas num mar de lirismo que de repente se torna o clima da “narrativa” que muitas vezes se aproxima do poema em prosa.
Dinho, Karam e Sanches
Nesta nossa viagem, paremos na estação Domingos Pellegrini. Ele começa como um autor engajado, o que fica demonstrado em O homem vermelho, em que consta um dos contos mais refinados de nossa produção atual: “O encalhe dos 300”. Seu mundo acerca- -se tanto do sertão como do centro urbano e várias vezes da chácara onde vive. Com um olhar agudo para os aspectos sociais do Brasil, nos dá uma obra-prima como Terra vermelha que, nas palavras de Affonso Romano de Sant´Anna, “adiciona um elemento a mais para se entender a formação brasileira. Assim como o fez Erico Verissimo nos seus conhecidos romances históricos, Pellegrini está recriando a `terra vermelha´do Paraná, o `eldorado´para onde foram colonizadores das mais variadas etnias e nacionalidades.” Para quem teve oportunidade de assistir as peças de Manoel Carlos Karam, no saudoso Teatro de Bolso, elas eram demolidoras, porque também no teatro Karam não se conformava com as regras estabelecidas e propunha uma nova dicção que encantava e intrigava. Escreveu inúmeras peças que esperam por uma reunião em livro. Contudo, o teatro para ele foi “um caminho para a literatura, este sempre foi meu projeto, ser escritor de livros”. Ele prossegue: “A possibilidade de recombinação do real, de poder fazer que os personagens façam o que você talvez não fosse capaz de fazer é fantástico”. Este sentimento do fantástico talvez seja o responsável pelo teor de absurdo e surrealismo apresentados em seus escritos.
“O humor de Karam varia do absurdo à alusão literária, da gozação de clichês a associações, do lírico ao curto e grosso. Em boa parte exige cultura. Mas para o resto basta inteligência”, assevera Ernani Ssó, na orelha de O impostor no baile de máscaras. Deonísio da Silva, em resenha sobre este mesmo livro, não tem dúvida em afirmar que Karam é “uma das maiores revelações da literatura nos anos 1980. Ele trouxe um problema danado para críticos e professores de literatura”, (Jornal da Tarde, 1992). Nesta mesma resenha, Silva se distende pela audácia de Karam, pela dissidência em face de antigos modelos que a tradição literária consagrou. “Seu riso é catártico, político. Seu deboche vitupera outros alvos, postos além daquelas conhecidas instituições, já calejadas de tanto receberem críticas mordazes.”
Miguel Sanches Neto era um crítico de ponta, quando surpreendeu o público “desviando-se” para o plano ficcional. Tem percorrido vários caminhos, numa multiversação que demonstra sua capacidade de lidar com vários discursos em diálogo permanente com os mais diversos temas: o romance histórico (Um amor anarquista, A máquina de madeira); a novela policial (A primeira mulher); a introspecção mais autobiográfica (Chove sobre minha infância); o conto (Hóspede secreto); a crônica (Herdando uma biblioteca, Impurezas amorosas); e um roman à clef ou key novel em que o personagem central aparece sob outro nome, porém já muito revelado pelo título: Chá das cinco com o vampiro, em que satiriza e tenta demolir vários escritores de Curitiba. Confessamos que este trabalho nos incomodou muito, porque criou um ninho de vespas e ao lê-lo elas voaram e nos picaram por todo o corpo. Talvez até tenhamos sido injustos com certas críticas que fizemos ao romance em eventos. Agora, passado algum tempo, estamos certos que uma das funções da literatura é realmente incomodar, nos tirar do conforto de nossas posições e sendo assim, vemos o romance como um ato de coragem de enfrentar certos figurões, pelo menos para despertar a sempre saudável polêmica.
E os novíssimos?
E o que falar a respeito dos novíssimos? Existem gerações de escritores no Paraná, uns mais maduros, outros em plena juventude. Citaremos alguns nomes, correndo o risco de esquecer outros e principalmente ignorar aqueles cuja obra ainda não caiu em nossas mãos.
Segundo Paulo
Venturelli, Marcelo
Sandmann “apresenta
um trabalho poético
extraordinário”.
Carlos Machado, cujo quarto livro, em nossas contas, é a novela Poeira fria, com um narrador em crise e sua fala com o terapeuta sobre o vazio e a falta de sentido de tudo; Maria Célia Martirani, com os contos de Para que as árvores não tombem de pé, em que “narra poemas e poetiza a narrativa” e que, no dizer do professor Marcelo Franz, trabalha com “o fabulesco a serviço de uma exaltação do dizer em suas amplas potencialidades”. Paulo Sandrini, escrevendo suas alegorias tortuosas sobre países de miragem, pretexto estético para criticar as mazelas e desmandos de um lugar chamado Brasil. Da obra deste escritor, podemos destacar Osculum obscenum e O rei era assim; Assionara Souza, que mergulha no delírio do experimento verbal, quebrando as baias do gênero: Cecília não é um cachimbo, Amanhã. Com sorvete e Os hábitos e os monges; Guido Viaro (neto) que já tem mais de dez romances publicados e, aleatoriamente, escolhemos para este panorama O quarto no universo e No zoológico de Berlim, um livro sobre um homem preso que, mesmo atrás das grades, luta para que sua alma não acompanhe seu corpo, e o lançamento há poucos meses de Confissões da condessa Beatriz de Dia; Cezar Tridapalli — ele já nos mostrou sua arte com o intrigante Pequena biografia de desejos e está com um original novo, que tivemos a oportunidade de ler e é um romance do mais alto quilate e que, quando publicado, marcará nossas letras, pela alta densidade literária; Marcio Renato dos Santos, cujos contos primiciais estão reunidos em Minda-au, mas que diz a que veio no novíssimo Golegolegolegolegah!; Luís Henrique Pellanda — já nos deixou O macaco ornamental, de contos, e Nós passaremos em branco, de crônicas, e é o responsável pela organização dos dois volumes das melhores entrevistas do Rascunho; Regina Benitez, falecida e jogada no ostracismo foi resgatada por Paulo Sandrini, que publicou Mulher com avestruz e A moça do corpo indiferente, contos em que a solidão da condição feminina é a têmpera primeira da escritora; Marcelo Sandmann, poeta. Em seu último livro, Na franja dos dias, apresenta um trabalho poético extraordinário, impactante pela modernidade/contemporaneidade e pelo tráfego solto por temas corriqueiros ou metafísicos. É um livro que está por merecer maior atenção. E por falar em poesia, não podemos deixar de lado a antologia de poetas contemporâneos do Paraná, Passagens, organizada por Ademir Demarchi e publicada em 2002 nos traz 26 poetas. Pela inquietação e verve novidadeira, marcamos a presença de Adriano Smaniotto; Carlos Dala Stella com seu suntuoso O gato sem nome; não podemos esquecer o nome de Maurício Arruda Mendonça com seu Epigrafias.
Ainda no campo da poesia, é óbvio que não podemos deixar de lado um nome da maior importância entre nós: Helena Kolody. Na aparente simplicidade de sua poesia, temos um trabalho de cunho estético-ideológico, com uma imagística muito pessoal, por meio da qual repassa o mundo e as suas experiências.
O múltiplo Leprevost
Luiz Felipe Leprevost, da nova geração, tem produção em vários gêneros literários, do conto ao teatro.
Estas “linhas”, com as mais diversas dicções e efeitos nos entusiasmam e mostram que nossa literatura vai bem, independente dos centros maiores. Contudo, queremos ressaltar o escritor que, entre todos os novos, conseguiu demarcar sua presença com uma linguagem muito pessoal e demolidora, além de aguda originalidade no que tem publicado. Referimo-nos a Luiz Felipe Leprevost. Trazendo à discussão o Manual de putz sem pesares, vemos que ele navega por aquela presentificação a que já nos referimos e pela violência que, segundo Karl Erik Schollhammer, é um dos temas principais da literatura brasileira atual.
Os personagens de Leprevost vivem uma vida vazia de sentido e para cobrir este vazio, lá vem a droga, o álcool, a estupidez de um cotidiano sem projeto e sem guarda. Podres nesta vida, tais criaturas estão amortecidas pela padronização, robotizados em seus “sentimentos”, são seres desindividualizados e emparedados por estruturas de alienação. Nada lhes salva e, na verdade, ninguém está preocupado em salvar- se desta não-vida, se contentando em rastejar pelo chão duro de uma realidade de quem não atingiu a rigor o nível da humanidade. A satisfação burra vem de um baseado, da cachaça, da cocaína, da pancada na cara do outro, pois assim encontram adrenalina e investidos por ela, pensam cobrir o buraco de seu dia a dia.
O contista lança um agudo olhar sobre a Curitiba oficial. A Curitiba do Primeiro Mundo. A Curitiba como exemplo para outras cidades. A Curitiba para AS FAMÍLIAS. O autor desmonta estes mitos e vai fundo nas feridas sociais de uma cidade que tem o maior índice de drogados jovens, entre as capitais, segundo a fala de um candidato a prefeito nas últimas eleições. Leprevost mostra os cadáveres ambulantes. Não enfeita a janela pela qual vê o mundo e a cidade. Leprevost escreve de maneira solta, jovem, divertida, sem julgar nada, sem ser moralista. Enfia o bisturi e deixa o sangue envenenado escorrer. Um manual de sarcasmos, ironia, escrita ligeira e muitos putz... Com todas as falhas possíveis, com todas as ausências lamentáveis, porque não conhecemos a obra ou, conhecendo- a, não a lemos, reconhecendo nossos limites, com a estreiteza comum a um rápido ensaio, tentamos abarcar o que nos foi possível. Não tivemos aqui a pretensão da última palavra. Apenas levantamos diversas meadas, dentro daquilo que é de nossa alçada e o que foge dela com certeza tem muito mais amplitude. Demos apenas um passo para comemorar os dois anos de Cândido. E esperamos que esta publicação se mantenha e não sofra com os vaivéns da política. Que a literatura que é seu eixo se fixe acima de qualquer interesse de grupo e muitos aniversários possam vir e muitas outras vozes mais competentes que a nossa sejam ouvidas.
Os personagens de Leprevost vivem uma vida vazia de sentido e para cobrir este vazio, lá vem a droga, o álcool, a estupidez de um cotidiano sem projeto e sem guarda. Podres nesta vida, tais criaturas estão amortecidas pela padronização, robotizados em seus “sentimentos”, são seres desindividualizados e emparedados por estruturas de alienação. Nada lhes salva e, na verdade, ninguém está preocupado em salvar- se desta não-vida, se contentando em rastejar pelo chão duro de uma realidade de quem não atingiu a rigor o nível da humanidade. A satisfação burra vem de um baseado, da cachaça, da cocaína, da pancada na cara do outro, pois assim encontram adrenalina e investidos por ela, pensam cobrir o buraco de seu dia a dia.
O contista lança um agudo olhar sobre a Curitiba oficial. A Curitiba do Primeiro Mundo. A Curitiba como exemplo para outras cidades. A Curitiba para AS FAMÍLIAS. O autor desmonta estes mitos e vai fundo nas feridas sociais de uma cidade que tem o maior índice de drogados jovens, entre as capitais, segundo a fala de um candidato a prefeito nas últimas eleições. Leprevost mostra os cadáveres ambulantes. Não enfeita a janela pela qual vê o mundo e a cidade. Leprevost escreve de maneira solta, jovem, divertida, sem julgar nada, sem ser moralista. Enfia o bisturi e deixa o sangue envenenado escorrer. Um manual de sarcasmos, ironia, escrita ligeira e muitos putz... Com todas as falhas possíveis, com todas as ausências lamentáveis, porque não conhecemos a obra ou, conhecendo- a, não a lemos, reconhecendo nossos limites, com a estreiteza comum a um rápido ensaio, tentamos abarcar o que nos foi possível. Não tivemos aqui a pretensão da última palavra. Apenas levantamos diversas meadas, dentro daquilo que é de nossa alçada e o que foge dela com certeza tem muito mais amplitude. Demos apenas um passo para comemorar os dois anos de Cândido. E esperamos que esta publicação se mantenha e não sofra com os vaivéns da política. Que a literatura que é seu eixo se fixe acima de qualquer interesse de grupo e muitos aniversários possam vir e muitas outras vozes mais competentes que a nossa sejam ouvidas.