Pensata | José Castello
Uma aventura amorosa
A coluna Pensata abre espaço para que autores reflitam sobre um tema sugerido pela equipe do Cândido. Na estreia da seção, o escritor José Castello fala sobre a “crítica de escritor”, conceito que o crítico James Wood defende no livro A coisa mais próxima da vida. Esse tipo de texto, na visão de Wood, seria mais “vivo” do que a crítica acadêmica, esta lida apenas por especialistas
José Castello
Todo escritor é não apenas seu primeiro e solitário leitor, mas também seu primeiro e feroz crítico. A crítica — a leitura crítica do texto de ficção — está na essência da criação literária: sem ela não se avança, não se faz nada. Essa “crítica interior”, contudo, feita em silêncio e muitas vezes de forma dolorosa e até cruel, costuma ser menosprezada. Esquecida, mesmo. Só por isso — só porque, ao escrever ficção, o escritor pratica também a crítica —, já podemos afirmar que todo escritor está capacitado para praticar a crítica literária. Para praticar aquilo que passamos a chamar de “crítica de escritor”.
Essas reflexões me vêm à mente depois da leitura de A coisa mais próxima da vida, livro de ensaios do inglês James Wood. Detenho-me, em particular, no capítulo 3, “Como fazer uso de tudo”, onde Wood discute de forma mais detalhada a relação entre a crítica e a ficção. Para compreender a “críica de escritor”, ele sugere, podemos seguir o seguinte conselho do polonês Witold Gombrowicz: de que os leitores “deviam dançar com seus livros, em vez de analisá-los”. Aqui já surge, de modo camuflado, um denúncia da “crítica acadêmica” — aquela praticada nas universidades, sob a tutela da Teoria Literária — que costuma ver seus objetos de estudo como cadáveres em vias de dissecação, de reorganização e de classificação.
Foto: Divulgação
O crítico e escritor inglês James Wood foi resenhista do jornal The Guardian nos anos 1990 e editor da revista The New Republic entre 1995 e 2017. Desde então escreve na revista The New Yorker, nos Estados Unidos, onde vive atualmente.
Em vez de cortar, retaliar, esmiuçar, o crítico — e o leitor, porque todo leitor não deixa de ser também um crítico — deveria simplesmente dançar com as palavras. Entregar-se a elas e a seu rumor estético. Isto é, entrar no ritmo e na atmosfera do texto, viajar através de suas frases e imagens, “embriagando-se” e se entregando à nova visão de mundo que ele é capaz de inaugurar. O crítico como um sócio do escritor — e não como seu inimigo, ou seu juiz. O crítico como um co-leitor, alguém que dá a mão e acompanha, passo a passo, o escritor. Vista assim, a crítica literária se torna não mais uma luta contra o texto, mas uma aventura através do texto. Uma viagem — como aquela que podemos fazer ao Marrocos, ou à Lua.
“A crítica literária já existia muito antes da academia”, lembra James Wood. E — o mais importante — existia “como literatura”, isto é, pertencia à tradição literária e era exercida por escritores, e não por um corpo de especialistas. Por isso, quando escrevem sobre os livros de outros autores, os escritores são capazes de produzir uma crítica viva — “a coisa mais próxima da vida” —, um discurso que adere ao texto alheio, em vez de afastá-lo, fazendo com o autor uma parceria e abrindo, através desse laço, novos caminhos. Prossegue Wood: “Tal crítica está situada no mundo, não atrás dos muros acadêmicos, e não tem medo de fazer uso do que quer que venha à mente ou que esteja à mão”.
Trata-se de uma crítica, portanto, que a tudo inclui; que não fica presa à grade de conceitos críticos erguidos por esse ou aquele teórico, por essa ou aquela teoria. Mas que, em vez disso, afunda a ficção na existência. Uma crítica que, mais que a razão, se guia pela intuição. Uma crítica que não teme admitir a incompreensão; mas, ao contrário, dela faz um trampolim para expandir suas leituras. Incompreensão que é, ela também — como em qualquer relação amorosa —, uma parte importante do exercício de aproximação. A esse respeito, diz Wood: “Grande parte da crítica que mais admiro não é especialmente analítica, mas na verdade uma espécie de redescrição apaixonada”. A “crítica de escritor” é, assim, uma leitura secreta, que leva em conta, antes de tudo, fatores íntimos e particulares e só muito depois pensa — se é que pensa — nos aspectos teóricos.
“Às vezes, ouvir um poeta ou um romancista ler em voz alta seu poema ou sua prosa é uma espécie de ato crítico”, diz Wood. Ao ler, apenas ler, todo leitor (escritor ou não) já interpreta o texto à sua maneira, já o acessa por um caminho diferente. “Os livros não existem, eles só existem na cabeça dos leitores”, observou, no passado, o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos. Fora disso, não passam de um amontoado de papéis e de rabiscos. Eles só passam a existir quando alguém os lê. Acrescenta Wood a respeito: “Eu chamaria a esse tipo de crítica uma maneira de escrever através dos livros, e não só sobre eles”. O leitor também é Sujeito do que lê — não é apenas um Objeto indiferente que consome uma obra, como se ela fosse um automóvel, ou um sorvete.
Lembra James Wood que esse “escrever através” se dá, muitas vezes, pelo uso das metáforas e de símiles que a própria literatura utiliza. Em vez de distanciada e cerebral, a “crítica de escritor” está, ela também, recoberta de imagens e (por que não?) de beleza. Ela é também criação literária. “A metáfora é a linguagem da literatura e, portanto, da crítica literária”, Wood nos lembra. Para ele, a ficção é o “jogo do não completamente”. Também a “crítica de escritor” não pretende esgotar nada, quer apenas indicar e sugerir.
Lembra-nos James Wood, por fim, que, na “crítica de escritor”, é como se o crítico anunciasse: “Vou me empenhar para que vocês sejam capazes de ver o texto como eu vejo”. Claro: todo leitor lê um texto sempre de uma maneira singular. Mas, partindo de “crítica de escritor”, em vez um chão que retalia e engaveta, ele pisa num universo em que a leitura admite tudo à sua volta, todas as ideias que a rondam, tudo o que ela é capaz de despertar. A crítica se torna assim não a biópsia de um cadáver, mas a celebração de uma vida.
José Castello nasceu no Rio de Janeiro e está radicado em Curitiba desde os anos 1990. Jornalista e escritor, pratica diversos gêneros, como a biografia, a crônica, o jornalismo literário e o romance. Dentre seus livros se destacam Vinicius de Moraes: poeta da paixão (1994), João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma (1996), Inventário das sombras (1999) e o romance Ribamar (2010).