Oficina BPP de Criação Literária - Conto

Tráfego de animais


Jean Marcel Snege
ilustra conto


Não fumo e nem tenho um cachorro. Preciso de um motivo para parar minhas atividades diárias e dedicar-me a um breve período de ócio contemplativo. Pode reparar, apenas os fumantes e os frequentadores de pet shops têm permissão para circular calmamente pelas ruas, contrariando o balé apressado dos pedestres. Outros que se atrevem a manter-se de braços cruzados são prontamente julgados pelos passantes, taxados de inúteis ou de malandros.

Por isso me refugio neste café, saindo da dimensão que compreende a calçada e a rua. Aqui posso mimetizar-me ao ambiente. Não sou mais que esta mobília polvilhada de açúcar ou as flores manchadas deste antigo papel de parede.

Peço uma água com gás e entre borbulhas vou analisando as pessoas do passeio. Certa vez ouvi uma teoria de que os rostos se repetem em diferentes gerações, como se nossas feições fizessem parte de um gigantesco banco de dados, mas que às vezes precisa reutilizar alguns de seus itens. Suposição, essa, que parece comprovar-se neste fim de tarde. Juro que aquela morena que passou estava presente num documentário sobre os negros judeus da Etiópia, que assisti esses dias, assim como aquele careca ali é o próprio rei inglês da apostila escolar, em quem desenhei bigodes durante uma aula entediante.

Os pedestres, porém, logo somem do meu campo de visão. É mais divertido concentrar-me nos carros e seus impacientes pilotos da hora do rush.

São três os motoristas que consigo observar com calma. A primeira é pouco mais que uma menina. Dirige um carro popular, mas zero quilômetro. Os vidros estão fechados e sua pequena cabeça balança de um lado ao outro no ritmo de alguma música que escuta e cantarola. Tento ler seus lábios róseos de um batom infantilizado, mas não consigo. É estudante universitária, pois carrega orgulhosa um adesivo da instituição na janela de trás do veículo. Nunca foi a melhor aluna da classe, apenas uma garota esforçada. Passou no vestibular para farmácia e ganhou o carro de presente dos pais, que não tiveram chance de fazer um curso superior. Logo irá trabalhar por um salário medíocre, ter atritos com seu chefe, arrumar um marido na área. Um apartamento em um bairro afastado, dívidas, filhos e um nódulo no peito esquerdo. Perdoará as amantes de seios lácteos de seu marido e dedicará seus dias restantes a uma hortinha de temperos na sacada sombria.

Logo ao lado da mocinha está um tipo asqueroso. Ódio à primeira vista. Um carro feito para chamar a atenção, maior do que o necessário, com duvidosos detalhes em dourado. O elemento já meteu a mão na buzina várias vezes e não deixa de acelerar o veículo, fazendo rosnar o motor. Leva sob o queixo uma papada animal, contornando a cara arredondada de cachaço. Ostenta uma obesidade corrupta, dessas que observamos em políticos e líderes sindicais. Uma correntinha de ouro apertada no pescoço largo faz par com outra que marca seu pulso, compondo um visual áureo e repugnante. Apostaria que é um advogado especialista em direito de família. Engana viúvas, chantageia maridos, usa seu dialeto jurídico para seduzir jovens órfãs. A ele está reservada a glória, a existência paradisíaca. Beberá todo o álcool, cheirará todo o pó, comerá todas as putas e nada ou ninguém atrapalhará sua caminhada. Viverá tranquilamente em um imóvel extorquido de seus clientes/vítimas. Terá vida longa e a velhice lhe trará reconhecimento. Deixará uma boa herança para filhos e netos, além do nome gravado em alguma rua da cidade.

O último personagem deste engarrafamento me perturba. É ele quem me observa, impassível, com as mãos apoiadas no alto do volante. Tentei distrair-me com os outros dois motoristas para desviar meu olhar do seu. O que ele pensa ao invadir meu esconderijo, em desmascarar minha camuflagem?

Ele vê um símio de meia idade, calvo, olhos azuis oceânicos, enegrecido por uma sombra parcial. Sua postura é de desafio, mas não esconde o cansaço de um animal de zoológico. Tem o estranho hábito de beber a água com gás antes do café, enquanto parece vigiar o mundo das janelas panorâmicas de seu aquário.


Jean Marcel Snege
é redator publicitário e artista gráfico. Este é seu primeiro conto publicado.Vive em Curitiba (PR)

Jean Snege participou da Oficina BPP de Criação Literária (Conto), minstrada por Miguel Sanches Neto, que selecionou a história que Cândido publica nesta edição. Miguel Sanches, no entanto, ressaltou que “deveríamos publicar uma antologia com um conto de cada autor, mas como não é possível, fiz uma das muitas escolhas que poderia fazer.”