Novela | Ana Paula Maia

Novela

Ao longo dos meses de outubro e novembro, a escritora Ana Paula Maia publica na internet a novela Desalma. O Cândido adianta o quinto capítulo do folhetim, que pode ser lido na íntegra no endereço desalmafolhetim.blogspot.com.br.

Leo Gibran


— Espero que hoje dê tudo certo.

Carnicara abaixa o volume do rádio. Bronco Gil apanha uma caixa preta no banco de trás do carro, abre-a e desembala quatro seringas. Enfia uma por uma num frasco de antibiótico e as enchem até a metade. Ao concluir, tampa cuidadosamente a agulha de cada uma e coloca-as novamente na caixa.

— Acho que são eles — diz Carnicara.

Os quatro rapazes saem de uma boate segurando copos descartáveis e visivelmente bêbados. Seguem para o final da rua onde estacionaram o carro.

— Se a gente não acabar com eles, vão acabar matando alguém no trânsito — diz Carnicara.

— Estamos tirando o lixo das ruas — diz Bronco Gil.

— O Estado deveria nos pagar por isso. É prestação de serviço público — conclui Carnicara dando a partida no carro.

Seguem os rapazes até um trecho deserto. Carnicara acelera, dá uma guinada e fecha o carro dos rapazes. Bronco Gil desce e enfia uma escopeta na cara do motorista. Entra pela porta de trás e os outros dois rapazes se espremem um contra o outro. Com a arma apontada para a cabeça do motorista, manda que siga o carro à frente. Um dos garotos vomita. Outro chora. Outro diz que seu pai é delegado. Outro que tem que ir ao banheiro.

— Mas só uma coisa, senhor, é sequestro? Por que se for, nossas famílias vão negociar, pagar o resgate...

— Não é sequestro e se alguém der mais um pio, um gemido sequer, eu mato aqui mesmo, entendido?

— Sim, senhor — responde o motorista.

Bronco Gil dá uma bebida para os rapazes. Todos bebem, inclusive o que dirige. Os rapazes vão desmaiando um a um. Bronco Gil toma a direção e conduz tranquilamente até a Fazendinha. São três da manhã quando chegam.

Arrastam os rapazes para dentro do salão da casa. Colocam-nos enfileirados no chão. Trocam as luvas de couro por luvas de borrachas. Bronco Gil aplica o antibiótico em cada um.

— Bronco, eu queria saber o que você coloca nesse boa noite cinderela.

— Segredo de família. Uso uns diazepans, umas ervas, uns ácidos, e aí, vira isso. Amanhã não lembram de nada. Nem depois, nem depois.

Eles riem.

— Isso aqui é boa noite Chuck Norris.

Carnicara amarra firme a base do pênis do primeiro rapaz, corta-o fora e o joga numa tigela. Repete o procedimento com os outros três.

— Às vezes lá na tribo alguém perdia o pau.

— Era castigo?

— Às vezes era.

— Sutura e faz os curativos nesses aí que eu faço aqui.

Carnicara levanta-se e apanha uma maletinha com linha e agulha cirúrgica. Coloca-a no chão e aproxima um abajur com uma lâmpada fluorescente antes de começar a suturar.

— O mandante não vinha também? — pergunta Bronco Gil.

— Desistiu. Acho que se apavorou.

— Acontece. Eu prefiro matar, nesses casos assim, a gente sempre corre algum risco de ser reconhecido.

— Eu sei. Por isso é bem mais caro. Confio nesse coquetel que você faz. Depois desse trabalho aqui, vou sumir por um tempo.

— Esse caso vai aparecer na televisão.

— Não sei, Bronco. Os moleques não vão mostrar a cara e a família vai querer sigilo. Ninguém quer ter um filho de pau decepado.

— Ninguém quer ter o pau decepado.

— Esse gordinho aqui se cagou todo.

— Cuidado pra não infeccionar.

— Preferia matar os desgraçados.

— Mas aí perde toda a graça, a ironia da vingança. Dá mais trabalho, mas os clientes gostam mais do resultado.

Carnicara enfia linha na agulha mais uma vez e ao concluir a sutura corta-a com uma tesoura. Faz um curativo rapidamente e vai para o rapaz ao lado.

— Quantos anos tem a garota?

— Quinze.

— O pior é que não importa quantos sujeitos como você e eu exista nesse mundo. Os desgraçados filhos da puta nunca acabam.

Bronco Gil apanha a tigelinha com os pênis e sacode a cabeça negativamente.

— Que foi, Bronco?

— Que faço com essa miséria?

— Enterra debaixo da bananeira.

Os procedimentos levam pouco mais de uma hora. Colocam os rapazes no carro novamente e dirigem por meia hora, até um rio. Acomodam um a um no chão, em meio às árvores, e o carro submerge nas águas quando o empurram para dentro do rio. Carnicara tira toda a roupa e coloca-a num saco preto. Veste uma calça de linho barata cor bege e uma camisa listrada de manga comprida e botões. Enfia a camisa para dentro da calça. Limpa os sapatos pretos sujos de lama com a barra de uma toalha velha. Joga-a dentro do saco. Caminham até a estrada, onde deixou seu carro estacionado. Penteia os cabelos para trás com a ajuda de um gel fixador. Os fios lisos e finos constantemente se tornam alvoroçados pelo vento. Bronco Gil está calado e com os olhos espremidos. Às vezes é capaz de permanecer um dia inteiro em silêncio. Dá a partida no carro e vão embora, pouco antes que o dia amanheça.

Quase uma hora dirigindo, encontram uma parada de caminhoneiros e decidem tomar um café da manhã. O movimento no lugar é crescente desde os últimos vinte minutos que estão ali. Comem fartamente pão, salsicha, ovos mexidos, suco de laranja, café, queijo, presunto e bolinho de chuva.

— Fazia tempo que eu não parava aqui — diz Carnicara.

— Não conhecia esse lugar.

— Vou tomar um banho e dormir o dia todo.

— Tá morando aonde?

— Em lugar nenhum, como sempre. Vou pra um motelzinho aqui perto mesmo. Esta semana eu vou pegar o pagamento e te repasso, ok?

Eles se levantam e saem juntos. Carnicara deixa Bronco Gil num ponto de ônibus e depois dirige até um motelzinho com fachada cor de rosa chamado Pâmela, onde costuma se hospedar quando está por essa região.

— Bom dia.

— Bom dia.

— Quarto 202.

O homem pega as chaves no painel de madeira atrás do balcão.

— Já soube o que aconteceu aqui no Pâmela?

— O quê?

— Um sujeito se hospedou aqui ontem a noite e deu um tiro na cabeça. Agora, eu pergunto, quem vai ter que limpar e pintar o quarto todo?

Carnicara sacode a cabeça negativamente e aperta os lábios. Baixa os olhos como se lamentasse.

— Por isso não gosto de hospedar gente sozinha. Até o colchão vou ter que trocar.

— Já tiraram o corpo?

— Tiraram sim, pastor. Tá uma imundície lá dentro. As meninas da limpeza disseram que não são pagas pra limpar sangue, só porra.

— É, irmão. A vida é dura.

— Pastor, o senhor ora por mim, estou precisando. As coisas por aqui estão difíceis.

— Vou orar sim. A vigília dessa noite foi muito boa. Orei bastante.

O homem atrás do balcão abre um sorriso de alívio e enrosca a ponta do bigode.

- Gosto quando o senhor se hospeda aqui. Sinto muita paz. Fica até quando?

— Vou embora hoje à noite.

— Muitas vigílias, pastor?

— Muitas. Não posso parar de orar.

Carnicara suspende a bíblia sagrada que está segurando.

— Aqui está o caminho e a revelação para uma nova vida. Muita gente precisa do que carrego aqui.

— É verdade, pastor. O senhor é uma benção.

Carnicara dá meia volta e segue pelo corredor. Passa em frente ao quatro com uma fita plástica amarela na porta. Cumprimenta as arrumadeiras que confabulam sobre o ocorrido e deseja a elas um bom trabalho indicando com a cabeça o quarto vitimado.

Tira as roupas e nu, examina-se diante do espelho. No chão, faz algumas flexões e sente o braço enrijecer. Olha-se novamente e acha que precisa intensificar os exercícios. Antes de ir para o banheiro, abre o zíper da capa preta da sua bíblia que deixou sobre a cama ao entrar e apanha uma pistola. Desmunicia a arma rapidamente através do ferrolho, apanha as balas caídas sobre a cama e coloca-as dentro de uma meia preta juntamente com outras munições. Folheia algumas páginas da bíblia guardada dentro da capa preta.

Toma um banho quente e demorado enquanto balbucia alguns versículos bíblicos que costuma decorar diariamente. Está cada vez mais convencido de que ter se disfarçado de um homem de fé, de alguma forma, o deixa mais perto de Deus, ainda que caminhe lado a lado com o diabo.


Ana Paula Maia
é escritora e roteirista. Autora de cinco romances, entre eles Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), Carvão animal (2011) e De gados e homens (2013). Seus livros também foram publicados na Sérvia, Alemanha e França. Alguns de seus contos foram incluídos em antologias no Brasil e no exterior, traduzidos para o alemão, croata, espanhol, inglês, italiano. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Ilustração Leo Gibran