Memória Literária

Canção de amor para João Gilberto Noll

O escritor e professor da UFMG Luis Alberto Brandão apresenta um ensaio em que há depoimento e diálogo com a obra do autor gaúcho, morto há um ano

E se eu tivesse embarcado sem saber na imaginação porventura extraviada de um terceiro? 
João Gilberto Noll, Anjo das ondas

     Foto: Kraw Penas
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No dia 16 de outubro de 2012, João Gilberto Noll participou de uma edição do projeto Um Escritor na Biblioteca e, entre inúmeras frases memoráveis, enunciou: “A literatura existe porque eu vou morrer. Não quero morrer, gosto de estar vivo, com todas as dificuldades. E a literatura é isso”.

A prendi com você, João, que com palavras é possível entrar em qualquer corpo. E é isso que faço agora, João, exatamente no dia 30 de julho de 2015, aqui em Fortaleza, atravessando o pátio do Dragão do Mar, bastante bêbado, tropeçando em minhas pernas de João, amparado por esse rapaz, meu deus, como estou bêbado, e feliz por ser amparado assim, eu aqui na Terra do Sol, tão amado por todo mundo, pois é, mas será?, será mesmo que me amam?, ou é a eterna miragem da minha voz, ah a voz do autor daquele livro, o Lorde, pois é, a voz do autor do Lorde lendo trechos do Lorde aqui na universidade, nesta terra que nem sei se é longe ou perto, ou se rasura a geografia, já que dizem que é por essas bandas que nasce o Sol, será que é por aqui, debaixo das águas quentes desse mar, nas noites de vento cantante, será que é por aqui que o Sol dormita, talvez sonhando com jangadas e jangadeiros no filme que o Orson Welles não fez justamente aqui, no abraço tépido do povo daqui, como é bom dizer a palavra “aqui”, e esse meu corpo de João alquebrado e bêbado sentindo-se tão aqui, tão entregue ao braço quente que me ampara e me conduz, como eu gostaria que esse braço me amparasse por toda a eternidade, meu deus, meu deus dos sem deuses, como eu gostaria que esse pátio fosse mais e mais comprido, e fôssemos caminhando indefinidamente, esse moço tão bonito e amoroso, que me corrige em meus tropeços, que compreende minha penúria, esse anjo todo bondade e gentileza, será mesmo, meu deus dos ateus, que ele sorri para mim?, ele, que tem a lua dentro do sorriso, ou é para o escritor que sei lá se sou?, me leva pelo braço, e neste meu braço flácido de João sinto o vigor do anjo bom, é ele, é ele sim, não ouviram os tambores?, é ele que veio bem do centro da mata para me salvar, não ouviram o canto da tribo?, é a plenitude em forma de índio, o índio mais belo, é esse sonho de moço pronto a me proteger de todo perigo, é o Peri que me resgata da miséria do mundo, que sustenta meu corpo depauperado, como se me tirasse do chão, diluísse meus pântanos, ah, meu deslumbrante Peri, seu coração está batendo bem aqui a meu lado, e é assim que eu posso sentir o pulso do meu coração de João, coração meio fraquinho, meio doentinho, mas não há de ser nada, não, viu?, tem esse outro coração batendo vigoroso ao lado do meu frágil coração de João, tem esse braço forte me apoiando, esse moço tão jovem, quantos anos ele tem?, meu deus dos desvalidos, vinte e poucos, será?, ele é a própria juventude na embriaguez da generosidade, a argamassa que vem recompor os buracos de meu corpo carcomido, rio imenso descendo as primeiras páginas de O guarani, irrigando a pele ressecada deste meu estranho corpo de João, quantos anos será que ele tem, esse raio de sol no escuro dos meus desertos, mas olhem ali, gente, na janela daquele sobrado, é ela, sim, claro que é a Madame Clessi, abanando a mão para nós, pois é, eu não disse?, ela sabe que as mulheres só devem amar rapazes de dezessete anos, por isso eu quero viver nesta terra, dentro do Sol que ampara este meu corpo de João, será que atravessei a peça do Nelson Rodrigues e me perdi?, em alguma encruzilhada?, me desgovernei na encruzilhada de memória, realidade e alucinação?, ah, que bobagem, de jeito nenhum, que alucinação que nada, olha eu aqui abraçado ao esfuziante Dragão do Mar, ninguém vai me tirar isso não, vou viver para sempre nesta terra, escuta só, olha só, Madame Clessi, esse braço jovem é de matéria sólida, sim, sólida e tenra, matéria de amor, olha só como me segura e me aquece, olha só como sou feliz aqui nesta terra de doçura, olha eu aqui flutuando nessa brisa delicada, como é gostosa essa embriaguez, como é boa essa intensidade, como é bom cambalear no fio da vida, e o que mais posso dizer, hein, meu amado Peri, o que mais posso dizer com essa minha língua de João se enrolando, embriagado sim, com essa minha voz tão molenga, trêbado sim, o que posso mais fazer, meu anjo bom, além de murmurar, nos teus braços quentes, murmurar e repetir o mantra que inventei agora, o mantra que diz assim: como é bom estar vivo!, murmurar e repetir a ladainha sem fim que daqui em diante será a minha, por todos os tempos: como é bom estar vivo!, murmurar e repetir e repetir incansável as cinco palavras que não vão deixar de soar por este meu corpo que já se tornou puro sopro: como é bom estar vivo!


João Gilberto Noll publicou 18 livros, 13 romances, três antologias de contos e duas obras infantis. Conquistou cinco prêmios Jabuti. Foi traduzido para o espanhol, o inglês e o italiano. Nasceu no dia 15 de abril de 1946 e morreu em 29 de março de 2017, em Porto Alegre (RS).

Luis Alberto Brandão é professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do CNPq. Autor, entre outros livros, de Teorias do espaço literário (2013, ensaio), Manhã do Brasil (2010, ficção) e Um olho de vidro: a narrativa de Sérgio Sant’Anna (2000, ensaio). Vive em Belo Horizonte (MG).