Memória
A vida: uma caricatura
Morto há 30 anos, o artista gráfico, jornalista e pesquisador Alvaro Cotrim, o Alvarus, foi uma figura de destaque na cultura brasileira entre as décadas de 1930 e 1980 — mas seu legado ainda é desconhecido pelas novas gerações
José Daniel Silveira Júnior
Foto: Divulgação / Manchete
Lá se vão 30 anos da morte de Alvaro Cotrim (1904 — 1985), caricaturista, jornalista e pesquisador carioca mais conhecido como Alvarus. E o que se constata é que a posteridade ainda não reconheceu devidamente a popularidade gozada em vida por esta figura tão importante da cultura e da imprensa do país. É constrangedor que isso aconteça justamente com um dos maiores experts da arte da caricatura no Brasil.
Na verdade, a constatação não é de hoje. Em 1999, o crítico literário Wilson Martins, em um artigo em que chama a atenção para a falta de ressonância da obra do caricaturista e humorista curitibano Alceu Chichorro, aponta seu lápis também para Alvarus — morto, na época, há 14 anos. “Prefaciando, em 1975, um livro de Newton Carneiro (O Paraná e a caricatura), Alvarus observava que ‘O Rio de Janeiro, apesar de Brasília, continuará ser a caixa de ressonância da cultura brasileira’ — caixa que, diga-se de passagem, há longo tempo deixou de ressonar em favor do próprio Alvarus”, escreveu Martins.
Embora seu nome tenha batizado uma rua da Barra da Tijuca em 2005, o fato é que a última exposição dedicada exclusivamente aos cartuns de Alvarus foi realizada em 1988, três anos após sua morte. Nenhum de seus livros foi reeditado e seus artigos e pesquisas sobre a história da caricatura e do erotismo na arte permanecem dispersos. Também não há registro de um estudo acadêmico ou biografia que trace de modo completo sua trajetória. Para piorar, sua estimada e riquíssima biblioteca particular foi desmembrada ao longo dos anos.
Mas, afinal, quem foi Alvaro Cotrim? “Ora, não há leitor no Brasil que não conheça Alvarus”, disse certa vez o repórter Armando Pacheco, por volta de 1950. Naquela altura, o cartunista (que não gostava dessa denominação, para ele um neologismo desnecessário) já tinha 25 anos de imprensa na bagagem — uma trajetória iniciada no jornal A Pátria, quando ele tinha 19 anos. Ainda nestes primeiros anos, produziu ilustrações para diversas revistas e trabalhou nos jornais A Manhã e Crítica, ambos fundados por Mário Rodrigues, pai de Nelson Rodrigues.
Nelson dizia que ele e Alvarus eram “amigos há mais de 200 anos” e chegou a citar o cartunista em suas memórias, publicadas originalmente no Correio da Manhã, a partir de 1967. “Eu falava no telefone com o comissá- rio e via, no fundo da redação, o caricaturista Alvarus (na véspera, Alvarus tivera um bate-boca com um repórter francês, se não me engano de Marselha. Discute daqui, dali, e Alvarus deu-lhe um soco na boca). (...) Hoje, ninguém imagina o que eram as velhas gerações românticas da imprensa. Mudaram o jornal e o leitor.”
Carlos Drummond de Andrade e Alvarus tiveram pequenos desentendimentos, mas se admiravam. Aqui o poeta retratado pelo amigo.
Uma geração inteira de leitores conheceu e admirou Alvarus por suas caricaturas e charges, que faziam sucesso em quase todos os diários e periódicos cariocas. Das revistas Para Todos, A maçã e Vida Moderna ao jornal A Noite, onde atuou de 1929 até sua extinção, em 1954. Mas seu auge de popularidade aconteceu no fim dos anos 1930, quando produziu séries de ilustrações para a revista Dom Casmurro e portrait-charges (retratos caricaturais) de personalidades políticas, artísticas e intelectuais para a Vamos Ler. Uma parte dessa produção foi reunida no raro álbum Hoje tem espetáculo (1941) e no livro Alvarus e seus bonecos (1954), apresentado pelo escritor e historiador da caricatura Herman Lima.
Nos anos 1960, perto de se aposentar como funcionário de carreira da Caixa Econômica Federal (onde ingressou em 1929), Alvarus abandonou a produção de caricaturas para se dedicar exclusivamente aos estudos e artigos — que publicava em veículos tão distintos como o Jornal do Brasil e as revistas adultas Fair Play e Ele & Ela (em que fazia questão de reproduzir itens de sua famosa coleção particular de livros e gravuras). O acervo, tido como o mais completo do país na área de caricatura e erotismo, incluía, entre os muitos itens de destaque, a obra litográfica quase inteira (4 mil gravuras) do artista francês Honoré Daumier (1808-1879), conhecido como “O Michelangelo da caricatura”.
Também figuravam nas estantes de sua casa, no bairro da Gávea, cole- ções completas do La Caricature e do La Charivari, raríssimos jornais franceses considerados pioneiros pela postura libertária e republicana e pelo uso da caricatura como mensagem icônica e crí- tica ao establishment político e social da França a partir de 1830. Fonte de consulta permanente de suas pesquisas, o La Caricature publicou as duas primeiras caricaturas do imperador D. Pedro I, feitas justamente por Daumier. A descoberta encontra-se registrada no primeiro livro de estudos de Cotrim, Daumier e Pedro I. O volume foi lançado em 1961, junto com a Exposição Daumier, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com curadoria dele e centenas de objetos de sua coleção particular.
Outros livros surgiram de suas pesquisas: Oswaldo Cruz Monumenta Histórica Tomo I (com Edgard de Cerqueira Falcão), Museu Imperial (com Lourenço Lacombe), Pedro Amé- rico e a caricatura e Jota Carlos, época, vida e obra (publicado postumamente). Como professor, Alvarus ministrou por muitos anos o curso de Bibliografia da Imprensa Ilustrada na Escola de Biblioteconomia da Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara. Também ocupou, em 1973, o cargo de diretor executivo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS). A partir de 1979, passou a trabalhar no jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde permaneceu até 1985, ano de sua morte.
Reprodução
O crítico Otto Maria Carpeaux desenhado pelo amigo Alvarus.
Espírito jovem
Ao completar 80 anos, Alvarus declarou: “Uma das grandes vantagens agora é que as moças vêm beijar a gente com entusiasmo, pensando sempre que não há perigo”. Ou seja: mantinha-se com espírito jovem e maroto. Na rua, às vezes era confundido com o barão da nota de mil cruzeiros ou até com um fantasma do Segundo Reinado. Mas, certamente, quem topasse com o caricaturista contemplaria um senhor com um paletó bem alinhado, gravatinha borboleta e um vistoso bigode — branco, longo e circunstancialmente curvado nas pontas.
Gostava de borboletear pela cidade, já muito diferente daquela em que tinha nascido. “O Rio sempre foi uma maravilha. Hoje está uma porcaria. Esburacado, quase irreconhecível. Nasci num Rio que não tinha um milhão de habitantes. Hoje a cidade está suja, mal - tratada, com assaltos. É profundamen - te melancólico. (...) Sou do tempo em que a gente encontrava alguém na rua, à noite, e cumprimentava. Hoje a gen - te foge. Tenho medo de ser assaltado. E não vejo nenhuma providência para acabar com isso”, afirmou para o jornal O Globo, em 1985.
O Rio de Janeiro dos anos 1980 surpreendia negativamente o velho Al - varus. No Jockey Club da Gávea, onde costumava almoçar com os comensais da mesa 19, vivenciava com perplexi - dade e espanto o momento. “No pra - do, não sei de nada, mas ouço falar por aí que a frequência não é das melhores. Que agora tem de tudo: manicure, calça jeans, chinelão de borracha”, disse para o Jornal do Brasil, em 1984. Um dos só- cios ilustres do clube, ele não era exa - tamente um entusiasta da corrida de cavalos. Gostava mais de encontrar os amigos e se deliciar com uma feijoada. Depois, jogava uma partida de xadrez ou dava um passeio pelas livrarias Da Vinci ou Kosmos.
Por muitos anos, seu dia prefe - rido foi o sábado. Ou Sabadoyle, como eram chamados os encontros realizados desde 1968 no apartamento do biblió - filo Plinio Doyle (advogado da edito - ra José Olympio). Alvarus foi um dos mais assíduos ministros desta igreji - nha de intelectuais, poetas e escritores, pontificando ao lado de figuras como Carlos Drummond de Andrade, Pe - dro Nava, Mário da Silva Brito, Pau - lo Berger, Américo Lacombe, Homero Senna, Cyro dos Anjos e Homero Ho - mem, entre tantos outros.
Em 1973, a revista Manchete pu - blicou uma matéria sobre o grupo e destacou a participação do caricaturista: “Em volta de Alvarus ficam os que gos - tam de se divertir. Os casos que conta, com seu bigode imperial — envolvendo figuras da história, literatura e política —, provocam risos até em Drummond, normalmente sóbrio”. Não à toa, o poe - ta mineiro dedicou uma crônica ao amigo, em homenagem aos seus 70 anos. “Alvarus ri e faz rir”, escreveu.
Mas a relação dos dois nem sempre foi de amizade. Pelo contrário. Foram desafetos por um longo tem - po, talvez por causa de uma caricatu - ra produzida por Alvarus que retratava Drummond tropeçando numa pedra. Na verdade, como ambos esclareceram mais tarde, não tiveram a oportunidade de se conhecer antes. Depois de apre - sentados pelo editor José Olympio, passaram a conviver e se admirar.
Alvarus foi personagem recorrente de crônicas de seus colegas de im - prensa. Eneida, cronista e estudiosa do carnaval, uma vez afirmou que metade das piadas do Rio de Janeiro provinham do caricaturista. Segundo ela,
era melhor atravessar a rua e se esconder caso você topasse com o sujeito, pois ele se - ria capaz de fazer qualquer um per - der os compromissos do dia com suas histórias e anedotas.
Afetuoso até nas situações mais difíceis, o caricaturista fazia questão de ir a todos velórios que pudesse. E, se tivesse oportunidade, discursava em homenagem ao finado. No velório de Otto Maria Carpeaux, declarou um dos princípios éticos dos enterros: “Vou no de quem penso que vai no meu”.
Rubem Braga no traço de Alvarus.
A biblioteca
Aqueles que conheceram a biblioteca de Alvarus se questionam até hoje: “Onde ela foi parar?” — pergunta que o jornalista e biógrafo Ruy Castro também fez numa de suas crônicas para a Folha de S. Paulo, publicada em 2014. Dias após a morte do caricaturista, um amigo bem próximo da família alertou a viúva, Maria Isabel “Morena” Cotrim, para que ela abrisse com cuidado seus livros, pois Alvarus havia guardado muito dinheiro dentro deles. Os familiares folhearam todas as obras e encontram uma quantia substancial, em dólares.
Em apenas dois anos, sua coleção particular, composta por 5 mil livros, 1,8 mil álbuns e 2 mil gravuras, passou a ser dispersa. Apesar das imediatas manifestações públicas (como a de Ziraldo, na época presidente da Funarte) no sentido de que a biblioteca seria um bem cultural nacional e deveria de algum modo ser preservada, a família, enfrentando problemas para armazenar os itens, decidiu comercializá-los. “No Brasil ninguém quis. Aqui não houve interesse, não teve o menor eco. Foi impressionante, pois oferecemos para vá- rias universidades e instituições”, conta Ana Cristina Cotrim, neta de Alvarus. Uma parte do acervo foi vendida para uma universidade norte-americana e o restante para colecionadores e sebistas, principalmente em leilões realizados ao longo dos anos.
Poucos comentam, por outro lado, que o caricaturista já vislumbrava esse destino para sua coleção. Tomou a precaução de colocar preços e incluir recortes de catálogos na contracapa de praticamente todos os itens raros. Alvarus, pelo que consta, não deixou nenhuma outra determinação. Imaginava, talvez, que um dos possíveis destinos de sua coleção seria Paris, uma vez que muitos livros foram trazidos de lá.
Em 1946, meses após o término da Segunda Guerra Mundial, Alvarus viajou a Paris para fazer a cobertura gráfica da Conferência de Paz. Levou na bagagem dois quilos de ouro, com o intuito de adquirir tudo que fosse possível para complementar e ampliar sua biblioteca. Permaneceu na capital francesa por quatro meses, vasculhando cada cantinho das livrarias e dos buquinistas ao longo das margens do Rio Sena.
No dia 27 de novembro de 1946, procedente de Bordeaux, o navio Jamaique aportou na Guanabara trazendo 260 passageiros, 80 veículos Citroen, três cavalos reprodutores para haras cariocas e treze caixotes lotados de livros adquiridos por Alvarus. Já disseram que, pelas dificuldades econômicas que passava o povo francês no pós- -guerra, os volumes foram comprados a preço de banana. De qualquer forma, trazidos a peso de ouro.
Auto-caricaturas de Alvarus.
Quando indagado sobre o futuro de sua valiosa biblioteca, Alvarus gostava de repetir uma frase atribuí- da ao rei Luís XV (ou a sua amante, a madame de Pompadour), dita praticamente às portas da Revolução Francesa: “Après moi, le déluge” — algo como “Depois de mim, o dilúvio”.
A assinatura da coleção encontra-se colada na contraguarda dos livros. Indicando a posse daquele exemplar, um ex-libris datado de 1936, desenhado pelo próprio caricaturista, traz um simpático e sorridente boneco. A cabeça e o dorso são duas bolinhas. Uma das mãos ajusta a bengala que apoia as pernas cruzadas. E o dístico:
O Homem: — um Boneco
A Vida: — uma Caricatura
José Daniel Silveira Júnior é jornalista. Vive em Curitiba.