Making of | Memórias sentimentais de João Miramar

Miramar aos 90

Principal romance do modernismo brasileiro, Memórias sentimentais de João Miramar teve um périplo tão tortuoso quanto o do personagem-título e de seu autor, o inquieto Oswald de Andrade


Luiz Rebinski Junior

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Tão anárquica quanto a prosa é a trajetória editorial de Memórias sentimentais de João Miramar. O “romance” que completa 90 anos em 2014, é uma espécie de síntese do processo criativo de seu autor, Oswald de Andrade. Não só por conta da estética afeita a inovações, mas também em razão do processo criativo empreendido pelo escritor modernista.

Há indícios de que Oswald tenha começado a escrever Miramar logo após uma de suas viagens à Europa, em 1912. Mas a primeira aparição do que viria a ser o livro se dá dois anos mais tarde, em 1914, no jornal A Cigarra. A partir daí vários capítulos do romance, formado por 163 fragmentos que compõe a vida do personagem-título, aparecerão em jornais e revistas de pequena circulação de São Paulo, onde apenas um círculo restrito de intelectuais tem acesso. Neste sentido, Oswald antecipa o caráter aventureiro do personagem — que pula de publicação em publicação — antes mesmo de o livro vir à tona.

Os “relâmpagos” que dão conta da existência de Miramar (o personagem) também estão em sintonia com a verve inquieta de Oswald, àquela altura impregnado pelas vanguardas europeias. O poeta Haroldo de Campos, em seu famoso ensaio “Miramar na mira”, aproxima o Ulysses, de James Joyce, à obra-prima do escritor paulistano, que, no entanto, não identificava o elo.

Se no plano estético não se pode cravar uma aproximação, tanto Ulysses quanto Miramar tiveram trajetórias tortuosas até chegar à publicação. O livro de Joyce surgira a partir de um conto escrito em 1905, mais de uma década e meia antes do materialização de Ulysses em livro, em 1922. Miramar, ao pedaços, igualmente vagou pelo menos uma década por revistas e jornais até vir à tona.

“Em 1923, Oswald de Andrade reformulou inteiramente as Memórias sentimentais de João Miramar, modificando a primeira redação completa, embora já tivesse publicado alguns capítulos na imprensa local, entre 1914 e 1919”, diz Maria Augusta Fonseca, professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Compara da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo Maria Augusta, que também é autora da biografia Oswald de Andrade, da primeira versão do livro restou o testemunho de um caderno completo das Memórias sentimentais, que até onde se sabe, estava sob a guarda familiar. “Revolucionando seu próprio fazer, reconhecemos na versão publicada de 1924 apenas os títulos dos capítulos do manuscrito iniciado em 1914, e vestígios de alguns capítulos, dos quais o artista extraiu fragmentos”, diz.

Garçonnière

Em 1917, Oswald aluga uma Garçonnière na Rua Líbero Badaró, número 67, no então efervescente centro de São Paulo. No ano seguinte, 1918, ao longo de seis meses, o escritor dá início a um diário coletivo intitulado O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, em que, além dele próprio, colaboraram figuras como Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato e Léo Vaz.

Os frequentadores, entre eles Daisy — chamada de Miss Cyclone e uma das grandes paixões de Oswald —, registravam suas observações com bilhetes, receitas, poemas e desenhos. O livro, esgotado, foi publicado em 1987 em tiragem limitada pela editora Ex-Libris, com um projeto gráfico cuidadoso, preservando detalhes como colagens e dobras, e que traz dois ensaios importantes, que ajudam a compreender um pouco desse tempo, o primeiro deles assinado por Mário da Silva Brito e o outro de autoria de Haroldo de Campos. Agora O perfeito cozinheiro das almas deste mundo está disponível também em livro, em edição do selo Biblioteca Azul, da editora Globo.

Utilizando-se dos pseudônimos Miramar e João Miramar, Oswald aproveitou alguns fragmentos de sua lavra, extraídos desse diário coletivo, no seu futuro livro. Ali, já se verificavam as ambiguidades verbais, o espírito jocoso e a variedade temática que mais tarde estariam presente em Miramar e, posteriormente, em Serafim Ponte Grande, outro romance em que o escritor subverte a forma literária ao fundir gêneros.

Publicação

O tom fragmentado da narrativa pode sugerir um livro feito a partir de insights. Mas os dez anos que separam os primeiros vestígios de Miramar na imprensa até a publicação do romance dão conta de uma obra que foi exaustivamente retrabalhada. “Oswald trabalhou bastante para dar feição final às Memórias sentimentais de João Miramar; basta comparar o que foi publicado antes, em revistas e jornais, e a publicação de 1924. Não sei se era obcecado pela perfeição do texto, mas certamente buscava uma expressão artística inovadora, de alta qualidade. O que conseguiu”, diz a biógrafa Maria Augusta Fonseca.

Lançado dois anos depois da mítica Semana de Arte Moderna pela Editora Independência e com capa de Tarsila do Amaral, Miramar teve uma circulação restrita. Prolífico, Oswald lançou, apenas um anos depois de seu
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romance mais célebre, em 1925, outro livro importante para a literatura brasileira: a coletânea de poemas Pau Brasil, editado com a ajuda do poeta suíço Blaise Cendrars.

Já na década de 1930, surge Serafim Ponte Grande, romance que também dialoga com as questões estéticas de Miramar, mas exacerba o lado picaresco de Oswald ao criar personagens antológicos como Pinto Calçudo, que é expulso do romance. Serafim, assim como Miramar, reforça a visão de um Brasil que, tardiamente, tentava se modernizar, sempre sob o prisma de um narrador privilegiado, rico e passageiro da primeira classe de transatlânticos.

Do ponto de vista editorial — e dada sua importância para a literatura nacional —, Memórias sentimentais de João Miramar foi um fracasso. O romance só reapareceria em 1964, quarenta anos depois da primeira edição e uma década após a morte de seu autor.

Isso se deveu a circunstâncias de ordem pessoal e de natureza política, sugere a biógrafa, que cita o ostracismo em que Oswald foi submetido depois de 1930 e a censura no Estado Novo como fatores para que Miramar fosse pouco comentado. A reedição do livro se deu graças ao empenho de Mário da Silva Brito, que foi amigo íntimo do autor e grande estudioso de sua obra, além de pioneiro historiador do modernismo brasileiro. “No caso de Memórias sentimentais de João Miramar, acresce à dificuldade de compreensão por grande parcela de leitores, a falta de circulação desses livros, geralmente com tiragens pequenas e a custas do autor. Talvez o próprio Oswald de Andrade não tivesse interesse naquele momento, uma vez que nas décadas de 1940-50 centrou seu projeto estético na elaboração de Marco Zero (que pretendia conceber em 5 volumes, cada qual com um título específico). Desse conjunto só concluiu dois volumes: A revolução melancólica e Chão.”