Making Of

O resgate de Lavoura arcaica

Clássico da literatura contemporânea, Lavoura arcaica foi lançado em 1975 sem grande alarde. A ressurreição do livro viria mais de uma década depois, na terceira reedição, em 1989

Fabio Silvestre Cardoso

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Raduan Nassar escreveu, na década de 1970, o livro Lavoura arcaica. Desde então, a obra permanece no imaginário da crítica como um dos principais romances da literatura brasileira, presente na maioria das antologias do gênero quando se trata de destacar a qualidade estética ou mesmo a ideia de vanguarda que muitas vezes está intrinsecamente ligada à obra de arte. Tamanha reputação, no entanto, não foi garantia para que o livro do escritor nascido em Pindorama, interior de São Paulo, tivesse êxito editorial na década subsequente à sua publicação. Na verdade, a história tem requintes de ficção.

Tudo isso porque, nos anos 1980, década posterior ao lançamento de Lavoura arcaica, a obra caiu numa espécie de limbo editorial, permanecendo na garagem de Raduan Nassar por muitos anos. Quem conta parte dessa história quase fantástica é o escritor Milton Hatoum. “Certa vez, Raduan me contou que tinha dezenas de exemplares do Lavoura arcaica na casa dele. Um dia ele ficou de saco cheio de deu todos esses livros”, relembra o autor de Dois irmãos. Se é verdade que para muitos autores o encalhe é parte integrante das contingências do mercado editorial, também seria correto assinalar que, em casos como o de talentos reconhecidos como Raduan Nassar, esse processo fosse um pouco diferente. Não foi o caso.

Nas palavras da crítica literária da Universidade de São Paulo, Leyla Perrone-Moisés, autora de um dos primeiros textos analíticos sobre o romance, o fato de a obra ter permanecido na garagem do autor, embora tivesse sido um sucesso de crítica nos anos 1970, não chega a ser novidade ou mesmo inexplicável. “Acho que é natural o fato de um livro ser provisoriamente esquecido, afinal as editoras vivem de novidades”, diz Perrone-Moisés. De qualquer modo, a autora de Altas literaturas observa que o livro não foi abandonado pelos críticos. “Havia debates sobre o livro e ele já estava, de certa forma, canonizado. Não demorou muito para ele ser notado pelos leitores franceses, especialmente Alice Raillard, que o traduziu para a editora Gallimard nos anos 1980.”

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De sua parte, Raduan Nassar pareceu sempre alheio e desconfiado em relação à análise dos críticos. Ao Cadernos de Literatura Brasileira, em uma de suas raras e mais contundentes entrevistas já concedidas (o autor é notoriamente conhecido pela sua reserva no trato com a imprensa quando se trata de discussão de temas literários), ele observa, fazendo coro à afirmação do crítico português Eduardo Lourenço, para quem “não é o crítico que julga a obra, mas a obra é que julga o crítico”.

Boutade ou não, a avaliação de Nassar parece travar um bom diálogo com a primeira análise de Leyla Perrone-Moisés sobre o livro do escritor paulista. “Publiquei meu primeiro artigo sobre Lavoura arcaica na revista portuguesa Colóquio Letras, em julho de 1977. E eu começava aquele artigo dizendo que o romance de Raduan Nassar havia logo obtido um êxito de estima entre os intelectuais, mas que ainda era pouco comentado pelos críticos”, recorda a professora emérita da Universidade de São Paulo (USP).

Já para Milton Hatoum, o fato de o livro ter sumido do mapa pode estar vinculado à maneira como a obra foi trabalhada do ponto de vista editorial. “Cada livro faz a sua história. Esse texto difícil, com uma força poética extraordinária, foi publicado durante a ditadura. Acho que o público estava mais atento a questões explicitamente políticas, à literatura da violência, a um tipo de jornalismo adaptado, que pretende ser ficção. Além disso, talvez não tenha sido bem trabalhado editorialmente”, observa o autor de Cinzas do norte.

Redescoberta
A retomada do livro acontece em 1989. Tudo isso porque, embora o livro já tivesse alcançado duas edições — a primeira em 1975, pela editora José Olympio, no Rio de Janeiro; a segunda em 1982, pela Nova Fronteira, também do Rio de Janeiro —, foi com a terceira vinda, desta vez pela Companhia das Letras, que a obra retomou seu sucesso de estima e conquistou espaço definitivo no panteão das grandes narrativas da literatura brasileira do século XX.

Em sua coluna no blog da Companhia das Letras, o editor Luiz Schwarcz revelou uma conversa que teve com Raduan Nassar. Nela, afirmou ao escritor que em três décadas dedicadas à literatura, não editou livros melhores do que os do autor de Lavoura arcaica. Já o romancista, por sua vez, afirmou que jamais iria esquecer de quando o editor apostou nele, Raduan, no momento em que estava esquecido.

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“A reedição do livro pela Companhia das Letras foi a confirmação da fama que o livro já tinha entre os especialistas”, comenta Leyla Perrone-Moisés. E ela acrescenta, ainda, que o fato de o autor ter abandonado a literatura, depois de dois livros excepcionais, contribuiu para houvesse ainda mais interesse do público. Estabeleceu-se um paradoxo curioso, observa a crítica, quanto mais Raduan insistia em se esconder, mais ele aparecia.

O abandono de Raduan Nassar para com a literatura é desses eventos que podem ser classificados como mais inventivos do que a própria ficção. Tudo isso porque, depois de ter publicado Lavoura arcaica e Um copo de cólera, Raduan concedeu algumas poucas entrevistas e afirmou, acima de tudo, que a literatura já não tinha para ele a menor importância. Os únicos momentos em que o autor quebrou o silêncio, da década de 1990 para cá, aconteceu na consistente e reveladora entrevista concedida ao Cadernos de Literatura Brasileira, editado pelo Instituto Moreira Salles, em 1996; e num longo perfil assinado pelo jornalista Rafael Cariello publicado em 2012 pela revista Piauí.

A tônica desses depoimentos, no entanto, sempre é a mesma, a saber: a tentativa de escapar da conversa sobre literatura, como se esse fosse um assunto para ele demasiado aborrecido. Isso não quer dizer que o autor não tenha ideia consolidada sobre o significado de seu fazer literário; antes, representa uma manifestação, à maneira do personagem de Herman Melville (Batlerby, o escrivão), de preferir não tratar desse tema, deixando os leitores à espera de uma resposta para a pergunta: mas afinal, por que ele deixou de escrever?

Importância do estilo
Enquanto essa resposta não vem, nos momentos em que abriu a guarda para falar de literatura, é possível identificar elementos que mostrem de que maneira o estilo desse autor se confunde com o próprio ideal que ele possui de literatura. Assim, na já citada entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, o escritor afirma acreditar que a boa prosa sempre tenha sido poética e, mais adiante, complementa, dizendo que a literatura que lhe faz a cabeça é exatamente aquela que possui algum tipo de vibração.

Com efeito, é uma espécie de vaticínio para o leitor de primeira viagem do livro. Como sinaliza Milton Hatoum: “Lavoura arcaica aborda um drama familiar, mas também aponta para outras questões, pois a linguagem e os temas estão em sintonia nesse belo romance, que remonta a certas passagens bíblicas e corânicas. E um tema-tabu, o incesto, trabalhado com muito talento”.

Além de destacar os aspectos temáticos da obra, com suas ressonâncias bíblicas e islâmicas, Leyla Perrone-Moisés também salienta o estilo de Raduan Nassar: “Acho, pois, que o romance me espantou mais por seu estilo do que pela narrativa. Mas já estava clara, para mim, a importância da obra”, recorda.

Ao comentar o processo de composição do livro, Raduan Nassar, novamente em depoimento ao Cadernos da Literatura Brasileira, observa que a obra demandou oito meses para a sua elaboração. De acordo com as palavras do autor: “(...) tentava um romance numa linha bem objetiva. Só que em certo capítulo um dos personagens começou a falar em primeira pessoa, numa linguagem atropelada, meio delirante, e onde a família se insinuava como tema. Tudo isso implodia o meu esqueminha de romance objetivo”. A solução, para esse impasse, se deu de forma aparentemente simples: “transformei um velho, que ouvia aquela fala delirante, em irmão mais velho do personagem que falava, e foi aí que começou a surgir o Lavoura arcaica.

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Em 2001, essa narrativa a um só tempo singular e inovadora foi levada ao cinema, em um trabalho de adaptação assinado pelo cineasta Luiz Fernando Carvalho. Na avaliação de Milton Hatoum, a produção colaborou para sublinhar a importância do romance. “A belíssima adaptação do Luiz Fernando Carvalho foi bastante premiada e isso certamente ajudou a divulgar a obra”.