Making Of

A angústia do dia seguinte

Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline, é uma das obras mais influentes do século XX, mas ainda divide opiniões por causa do antissemitismo assumido do autor

Omar Godoy

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Nestes tempos em que boa parte das pessoas parece estar mais preocupada em agradar e ser benquista, a simples menção ao nome de Louis-Ferdinand Céline (1894 — 1961) pode representar uma provocação. Considerado por muitos o primeiro escritor maldito e marginal da História, o francês até hoje divide opiniões por conta de suas posições políticas condenáveis, que acabaram ofuscando uma das obras mais influentes da literatura.


Viagem ao fim da noite (Voyage au bout de la nuit, 1932), livro de estreia de Céline, fez a cabeça de uma lista interminável de autores e intelectuais. De Henry Miller a Lev Trótski — passando por Jean Genet, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Will Self, Pedro Juan Guitérrez —, muita gente se encantou com sua prosa ao mesmo tempo fluida e erudita, vulgar e poética, sarcástica e filosófica.


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Semi-autobiográfico, o romance não traz exatamente uma trama com começo, meio e fim. Trata-se de um monólogo de quase 600 páginas, em que o personagem/alterego Ferdinand Bardamu faz observações pessimistas e desagradáveis sobre sua trajetória acidentada. Um percurso que começa na Primeira Guerra Mundial, passa pela África colonial, pelos Estados Unidos em acelerado processo de industrialização e retorna a uma França já sem o status de grande potência.

Como Céline, Bardamu interrompe os estudos, alista-se no exército e encara de perto o absurdo da guerra. São apenas algumas semanas no campo de batalha, mas o suficiente para que ele sofra um ferimento grave e perca qualquer esperança na raça humana. A partir daí, o personagem passa a se deixar levar pelas circunstâncias, abraçando-se numa única motivação: sobreviver. Para isso, desenvolve uma personalidade fria e irônica, que Tróstski chamou de “visão passiva do mundo”.


Depois da guerra, Bardamu parte para a África, contratado como gerente de exploração numa colônia francesa. Ali, testemunha mais uma série de barbaridades e conhece Robinson, figura igualmente desiludida com a sociedade e que se torna fundamental em todos os momentos decisivos de sua vida. Doente, o protagonista abandona o trabalho e embarca de navio para os Estados Unidos, onde consegue trabalho como operário numa fábrica de automóveis.


Cansado de ser tratado como mera mão de obra, quase um escravo, retorna à França e termina seus estudos na área de saúde. Vira médico na periferia e, mais tarde, funcionário de um manicômio. O cenário agora é um país recém-saído de uma guerra (e prestes a entrar em outra) e cuja pobreza tornou as pessoas mesquinhas, hipócritas e aproveitadoras. Outro prato cheio para insights encharcados de niilismo.


“Eu tinha visto coisas demais para estar feliz. Eu sabia demais e não sabia o suficiente. O que é pior é que a gente fica pensando como que no dia seguinte vai encontrar força suficiente para continuar a fazer o que fizemos na véspera e já há tanto tempo, onde é que encontramos força para essas providências imbecis, esses mil projetos que não levam a nada, essas tentativas para sair da opressiva necessidade, tentativas que sempre abortam, e todas elas para que a gente se convença uma vez mais que o destino é invencível, que é preciso cair bem embaixo da muralha toda a noite, com a angústia desse dia seguinte, sempre mais precário, mais sórdido”, escreve, lá pelas tantas.

Nome Manchado
Publicado em outubro de 1932, o livro foi um sucesso instantâneo, de público e crítica, mundo afora. E, apesar de odiar tanto a esquerda quanto a direita, Céline passou a ser saudado por intelectuais dos dois lados do Fla-Flu ideológico. Tudo indicava que o médico, agora alçado à fama como romancista, já havia garantido sua entrada no clube dos escritores consagrados, mesmo com um único livro no currículo. Mas uma “viagem errada” manchou para sempre seu nome.


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Em 1936, Céline respondeu algumas críticas negativas ao seu segundo romance, Morte a crédito, da pior maneira possível: chamando todos os resenhistas de judeus (como se isso fosse um insulto). Em seguida, iniciou a produção de uma série de panfletos antissemitas agressivos e passou a colaborar com jornais partidários do nazismo. Como se sabe, a ocupação alemã na França não durou tanto tempo quanto ele esperava, e o preço a pagar por sua simpatia ao Terceiro Reich seria caríssimo.


Logo após o Dia D, o escritor fugiu para a Dinamarca com a mulher. Mesmo assim, foi condenado a um ano de prisão em Copenhague, a pedido do governo francês, que o acusou de traidor de pátria. Anistiado, voltou à terra natal em 1951 e retomou as atividades como médico. Escreveu mais seis romances (entre eles De castelo em castelo, Norte e Rigodon), praticamente ignorados, e morreu pobre e sem amigos, em 1961. Tinha 67 anos.


Ainda hoje, qualquer iniciativa para homenageá-lo na França é duramente criticada por uma ala significativa da intelectualidade daquele país. Há, no entanto, quem defenda uma leitura de sua obra que separe o cidadão do escritor. Para estes, Céline foi uma espécie bode expiatório da classe artística francesa dos anos 1940, que simplesmente abriu as pernas para o nazismo com receio de perder seus privilégios.


Por mais paranoico que fosse com relação aos judeus, Louis-Ferdinand Destouches (seu nome de batismo) jamais transferiu seu antissemitismo para os livros que escreveu. Não à toa, alguns deles foram editados até em Israel. Uma prova de que sua obra sobreviveu ao tempo, às patrulhas ideológicas e, principalmente, à burrice.