Literatura em cena | Recife

Espírito cosmopolita

Pulverizada e cheia de vozes em constante estado de migração, assim é a atual cena literária de Recife


Schneider Carpeggiani

Acompanhado por músicos, Ronaldo Correia de Brito tem se dedicado a uma série de performances em que interpreta contos de vários momentos da sua carreira. Não há um roteiro fixo, mas um texto em particular jamais se ausenta, “Homem atravessando pontes”, do livro Retratos imorais. É quando seus companheiros de cena tocam quase em silêncio, fazendo da música voyeur do percurso vivido pelo personagem: o centro do Recife e suas pontes que interligam o inferno e o paraíso da capital pernambucana, congestionada e turbulenta, habitada por desigualdades que insistem em querer posar como um cartão postal, ainda que às avessas. O Recife atravessado pelas tais pontes foi também personagem do seu último romance, Estive lá fora, depoimento amargo de quem insiste em lembrar a barra-pesada política dos anos 1970, antes que a memória se converta em folclore. Foi a cidade asfixiada pela ditadura que Ronaldo encontrou quando abandonou o sertão cearense para estudar medicina em 1969.

O Recife que vem se infiltrando com ênfase nos seus últimos livros é tanto realidade objetiva quanto o substrato mágico que certos autores precisam lançar mão para fazer de uma geografia particular um cenário universal, para além de mapas.

É o caso também do Recife sujo, sexual e bíblico, e assim atemporal e devedor de promessas, de Raimundo Carrero, que levou ao extremo sua relação com a cidade no romance Tangolomango. Na obra, uma prostituta idosa vive e revive sua existência em meio ao sábado de Carnaval, como uma Mrs. Dalloway silenciada pela potência de frevos antigos. Também sertanejo, mas pernambucano de Salgueiro, Carrero tem migrado cada vez mais suas narrativas para um Recife suspenso, um Recife que não existe mais, já que são independentes de calendários as cidades que se prestem a alegorias.

Foto: Divulgação
Ivánova, atualmente radicada na Alemanha, recria sua identidade recifense na ficção que publica em seu blog.

É curioso notar que os dois principais expoentes do que podemos chamar de “literatura pernambucana” — rótulo que mais exclui do explica — olhem sua matéria-prima geográfica a partir do olhar do estrangeiro ou daquele que migra guiado por forças tanto concretas quanto subjetivas. É um olhar de espanto, dos que jamais se acostumam. Para Ronaldo, uma certa “migração” não cessou: Recife é o ponto de partida e não seu tripé de estabilidade, que o excluiria de oportunidades em centros urbanos maiores: “O eixo Rio-São Paulo continua existindo, a força maior do jornalismo impresso e as editoras se concentram lá. Mas já não é necessário morar fora do Recife para ser convidado a dar conferências na China ou escrever uma matéria para uma revista francesa”.

Do lado oposto de Carrero e de Ronaldo está Marcelino Freire, outro homem de alma migrante: de Sertânia para Recife e, enfim, para São Paulo, mas que, da oralidade brutal das falas que o assombravam durante a infância no interior pernambucano, ergueu sua literatura sui generis. Violento e urbano, como seus companheiros paulistanos que emergiram no cenário literário brasileiro na virada do século, Marcelino soube se destacar justamente por jamais deixar calar as vozes que o nutriram. Caso semelhante é o da fotógrafa e escritora Adelaide Ivánova, atualmente radicada na Alemanha, que pelo seu blog vodcabarata.blogspot.com recria sua identidade recifense como uma espécie de centro nevrálgico para redimensionar as paisagens onde escolheu ou mesmo se viu obrigada a viver.

Outra migrante é a poeta recifense Micheliny Verunsckh, que prepara seu primeiro romance via patrocínio do Petrobras Cultural. Por enquanto reside em Olinda. Pensa em voltar para outra temporada em São Paulo, mas paquera Buenos Aires. “Creio que estar em trânsito, sempre de passagem, agrega, na minha escrita, na minha visão de mundo, elementos dos lugares pelos quais moro. Assim, por exemplo, Geografia íntima do deserto é um livro de Arcoverde, lugar que considero minha cidade natal. Já A cartografia da noite tem pedaços de Aldeia (na Região Metropolitana do Recife), de Recife, de São Paulo. Os lugares se inscrevem em mim, se grudam, transparecem no que eu faço para o bem e para o mal. Como se eu e minha escrita pudéssemos ser algo no qual vão se incrustando coisas: conchas, lacres de latas, cartas, chaves, uma esquina, uma réstia de sol.”

O olhar desses seres migrantes, vagando por aqui e por ali, mas sempre olhando para trás, talvez ajude a compreender o momento pulverizado vivido por quem escreve em Pernambuco ou a partir de fantasmas pernambucanos. Talvez não possamos mais falar em cenas literárias, como ocorreu em outras décadas, marcadas por movimentos como A Geração de Poetas de 1965 ou o Movimento de Poetas Marginais. Grupos mais recentes como o Vaca Tussa e Urros Masculinos (esse responsável pelo festival anárquico Free Porto) deixaram de atuar efetivamente. Recife vive um momento literariamente pulverizado, com vozes distintas e migrantes a emergirem. Como encontrar um ponto em comum no erotismo de palavras exatas, quase cabralinas, do veterano poeta Marco Polo, ex-integrante da mítica banda recifense Ave Sangria, e nos romances rebuscados de José Luiz Passos, que fetichizam memórias inventadas num jogo sensual quase onírico? Talvez o melhor seja não encontrar, melhor deixá-los perdidos em suas identidades intransferíveis.

Foto: Guilherme Pupo

O cearense Ronaldo Correia de Brito, autor do romance Estive lá fora, vive no Recife há décadas.

BLOCO DO EU SOZINHO
E por falar em cena, nem mesmo a do Mangue Beat, que chacoalhou a MPB nos anos 1990, ainda resiste. Talvez o único grupo artístico que hoje faça sentido — dentro do já mofado termo cena — seja o do Novo Cinema Pernambucano, capitaneado pelo sucesso internacional do filme O som ao redor, de Kléber Mendonça Filho, que descortina uma Recife assustada e fascinada com um progresso corporificado por congestionamentos gigantes e por espigões rasgando o céu.

É o que percebe também o jornalista Diogo Guedes, setorista de literatura do Jornal do Commercio, o maior de Pernambuco: “É complicado falar em uma ‘literatura pernambucana’ porque ela é formada hoje por autores singulares, com trajetórias bem específicas e também vivendo momentos diferentes”, diz Guedes. “Apesar disso, acho que Pernambuco — pensando especificamente em pessoas que nasceram, moram ou começaram suas trajetórias literárias por aqui — tem uma produção de literatura sólida. As premiações recentes para autores de longa trajetória, como Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito, atestam isso. Mas outros nomes têm merecido a atenção da crítica e da mídia literária do Estado e de fora, como José Luiz Passos (finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013 na categoria Romance), Everardo Norões, Sidney Rocha, Christiano Aguiar e Fernando Monteiro.”

Dentre os autores novatos, Guedes destaca o nome de Bruno Liberal (leia conto). Morador de Petrolina, no Sertão Pernambucano, Liberal foi o vencedor da primeira edição do Prêmio Literário de Pernambuco, parceria do Governo do Estado com a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). “Acho que o isolamento que sinto, por morar em Petrolina, é natural de um autor que ainda dá os primeiros passos e mora longe dos grandes centros literários. Cada vez mais tenho consciência que isso não é tão ruim como pensava. Talvez seja o próprio cerne da diferenciação da minha escrita. Por insegurança, esse ‘isolamento’ me faz um leitor e autor muito mais crítico. Isso acaba sendo um fator determinante para a forma como escrevo”, observa Bruno, cuja estreia literária, a coletânea de contos Olho morto amarelo, será publicada em outubro, durante a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, a terceira maior do Brasil.

A iniciativa de realização do Prêmio surgiu na gestão Wellington de Melo, atual responsável pela pasta de literatura do Estado. Em sua gestão, iniciada em 2011, ainda foram criados um festival literário em Petrolina, o Clisertão, em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e o Festival Internacional de Poesia (FIP). “Existe uma produção pulsante em diversas regiões, de autores das mais variadas gerações e dicções, que têm seu público, independente da necessidade de distribuição para fora do Estado, ou mesmo de se fazer chegar os livros a Recife. Escritores emergem em Goiana, Carpina, Garanhuns, Petrolina, sem depender do Recife”, diz Melo.

FLIPORTO

Entre 14 e 17 de novembro acontece a Fliporto, principal evento literário do calendário de Pernambuco, que começou suas atividades em Porto de Galinhas e, desde 2010, é realizada no Centro Histórico de Olinda. Quem faz a conferência de abertura desta edição é Pilar del Rio, presidente da Fundação José Saramago e viúva do escritor português. Segundo o curador geral do evento, o escritor Antonio Campos, a Fliporto é montada compreendendo o caráter migrante ou, em suas palavras, “cosmopolita” do que chamamos de literatura pernambucana: “Temos o orgulho local e regional combinado ao espírito cosmopolita que tanta caracteriza o nosso Estado, a ponto de podermos dizer que é quase um estado de espírito esse cosmopolitismo.” Talvez “literatura pernambucana” seja cada vez mais um estado de espírito ou um porto para se abrigar, ou mesmo jamais se perder, sempre que uma nova migração, interna ou externa, apareça à vista.