Justo Agora

João Anzanello C
Ilustração
arrascoza


Quando entrei no prédio e o zelador me entregou a cópia da chave, dizendo que ela saíra arrastando uma mala sob aquele temporal, eu pensei, justo agora que eu tinha planos de mudarmos para uma casa maior (uma surpresa que eu fabricava em sigilo), justo agora que ela estava trabalhando e não me pedia mais conselhos (era um indício de que estava partindo de mim), justo agora que ela comia verduras nas refeições sem contar as calorias, justo agora que eu já sabia dispor no meu cadinho a medida exata dela para realizar a minha química, agora que havíamos inscrito nosso caminho à flor da terra, sulcando-a e revolvendo-a com as nossas próprias mãos (esses arados arcaicos e insuperáveis!), justo agora — porque sempre haverá um justo agora; a vida está sempre para ser terminada —, justo agora uma nascente, miúda, mas impertinente, brotava em meu pensamento, espirrando dúvidas e mais dúvidas: quem iria cultivar em mim, com tanta sabedoria, a sua agricultura?; quem leria com a ponta dos dedos as tramas lavradas no meu rosto?; o que fazer com os seus caminhos que eu tinha decorados em meus lábios?; de que adiantaria ser um cordeiro se não haveria mais nenhum altar para o sacrifício?; de que valeriam os sacrilégios que eu cometeria se ela já não frequentava a minha missa?; quem receberia, ajoelhada, com tanta fé, a minha hóstia fervente?; que rosto mereceria as unhas da minha razão, que, de propósito, eu deixava crescer para machucá-la mais fundo?; quem passaria a planta dos pés no meu peito e, aos poucos, iria extrair de mim o fruto mais saboroso?; quem comandaria a oficina onde era cunhada a minha alegria clandestina?; quem colocaria numa só argola a volúpia e a ternura que saíam de mim como dois braços?; quem, com as orações certas, curaria o meu silêncio em carne viva?; como alçar voo se agora só haviam tocos de asas às minhas costas?; quem diria, com um raro senso poético, roubado da convivência comigo, me seque com a sua língua?; quem ela chamaria quando tivesse fome de minha boca e sede de minha saliva, como era comum desde os nossos primeiros dias até esta manhã em que, ao contrário das palavras brandas, foram suas injúrias rascantes que irromperam em meus tímpanos?; quem começaria a me desnudar, não pela roupa, nem pelos óculos, retirados lentamente, mas com o olhar?; quem eu destamparia, como uma ânfora, para atender com seu gênio devotado a todos os meus pedidos?; o dedo de quem, molhado em champanhe, ela iria lamber antes de sorver outros volumes?; quem ela evocaria, no seu templo íntimo, quando a realidade a agredisse?; quem iria desfrutar no futuro dos aprimoramentos que eu fizera nela?; quem a encontrara como um caniço vergado pela ventania, e, após cuidar de suas chagas, a erguera forte e airosa?; como aturar os miasmas da solidão depois de ter sido povoado por ela e conhecer, agora, as leis que governavam a saudade?; quem, sem respeitar seus (falsos) apelos, continuaria beijando seu pescoço, ligando, com a língua, a sua fábrica de desejo?; em que outros corpos, dali em diante, eu febrilmente a buscaria?; onde eu descobriria ruas e avenidas (ruas, principalmente) como as dela, nas quais eu passeara feliz, indo à medula dos bons momentos (porque o destino cobrava cada dia de felicidade com juros obscenos, seria preciso quantidades colossais de alegria para compensar a mais comum das nossas aflições), onde, onde eu descobriria?; para quem eu iria dizer, em voz alta, a lição primeira do meu evangelho, a verdade liberta, depois de todas as mentiras que engendrara para prendê-la a mim?; o que eu iria fazer com essa reserva de carinhos, esse estoque de ironias, guardados unicamente para ela?; como ocultar da próxima mulher que o meu vinho buscava outra taça (essas carícias não são pra mim, essa sua fome não me pertence), como, como ocultar?; para que lugar iriam as frases, sujas de humanidade, que eu, manuseando a matéria da vida, preparava para ela?; como compensar os estragos que eu lhe fizera se ela me expelia, como a última baforada de um cigarro, com a devolução daquela chave?; quem, além dela, iria fazer de minha sede a sua fonte?; quem poderia implodir com tanta facilidade a minha arquitetura?; e onde, onde, onde eu encontraria um novo músculo, macio e pequenino, capaz de preencher o rombo em meu peito no qual cabia unicamente a sua mão?
 

João Anzanello Carrascoza é escritor. Redator de propaganda e professor universitário, publicou, entre outros, os livros Espinhos e alfinetes (2010), Amores mínimos (2011), Aquela água toda (2012). Vive em São Paulo (SP).

Ilustração: Felipe Rodrigues.