Imprensa: Curitiba revisitada

Revista iconoclasta editada pelo jovem Dalton Trevisan entre 1946 e 1948, a Joaquim rompeu com o provincianismo local e colocou Curitiba no debate literário nacional

Daniel Zanella


A revista Joaquim é vista hoje não apenas por ter sido palco para as primeiras experimentações do escritor que Dalton Trevisan viria a se tornar, mas principalmente por ter colocado o Paraná no mapa das discussões literárias do Brasil dos anos 1940. A revista teve 21 edições e circulou entre abril de 1946 e dezembro de 1948.
Edição 15 Joaquim
Totem do provincianismo, Curitiba, à época, era uma capital com pouco mais de 120 mil habitantes, dominada pela cultura dos imigrantes que se estabeleceram na cidade na segunda metade do século XIX. O simbolismo francês dominava o cenário literário local, com Emiliano Perneta fazendo frente aos poetas curitibanos e um tanto alheio às transformações culturais vindas principalmente de São Paulo, com os modernistas. É nesse contexto que surge a revista Joaquim, que fez circular ideias mais arejadas, colocou em cheque os cânones locais, contestou padrões e publicou a nata de escritores e artistas plásticos de seu tempo. Teve colaboradores do porte de Poty Lazzarotto, que seguiria sendo seu grande parceiro editorial nas décadas seguintes, Temístocles Linhares, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, Guido Viaro, Otto Maria Carpeaux, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Sergio Milliet, Lêdo Ivo e Mario Pedrosa. Também publicou inéditos em português de Louis Aragon, Tristan Tzara, T.S. Elliot, Garcia Lorca, Rainer Maria Rilke, André Gide e Jean Paul Sartre.

Tomando como epígrafe a frase do poeta russo Maiakovski, “Eu me domo, o pé sobre a garganta de minha própria canção”, Joaquim abria a primeira edição propondo uma nova fronteira, em prol de uma literatura acima de limites geográficos, rompendo com todos os antecessores. “Por tudo, a literatura paranaense inicia agora”, dizia o provocativo editorial de abertura. Também se mostrava fundamental o slogan “Em homenagem a todos os Joaquins do Brasil”, estampado no cabeçalho da primeira página. O slogan, que a partir da segunda edição firmou “joaquins” em letras minúsculas, é representativo de um ideário: batizar a revista com um nome comum, próximo e universal, assim como os Joões e Marias que povoariam a futura obra de Trevisan.

Polêmicas

Não foram poucas as polêmicas nas páginas da Joaquim. Logo na segunda edição, o alvo foi o poeta simbolista Emiliano Perneta, figura referencial da cultura literária paranaense. Em Emiliano, poeta medíocre, Dalton afirma que Perneta fazia uma poesia de “casinha de chocolate”, sua obra “estava para Bilac como o canto do vira-bosta estava para o canto do sabiá” e sua inspiração era “rasa como capim”. “Pobre de quem lê 'Ciúme da morte' [famoso poema do simbolista], em vez de Dostoiévski.”

1 capa Joaquim
O artigo relembra a coroação de Emiliano Perneta, eleito Príncipe dos Poetas Paranaenses em uma pitoresca solenidade realizada no Passeio Público de Curitiba, em 1911, à época da publicação de seu livro Ilusão. Para homenagear o bardo local, foi construída uma pequena ilha de contornos gregos, em um cenário marcado pela pieguice e artificialidade. Dalton negava, de modo visceral, a validade da obra de Perneta. “Foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que podia ser, e, na morte, o cultua como o poeta que ele não foi.”

O cenário do pós-guerra e as novas discussões estéticas e filosóficas também apontam para a insuficiência do legado literário de Perneta — um descontinuado do mundo contemporâneo, segundo Dalton. “Ilusão é, por ventura, o melhor livro de poesia escrito no Paraná, grato ao nosso coração por um laço afetivo, mas nem por isso é livro que ultrapasse as fronteiras da Rua 15, e, para nós, neste instante, são as fronteiras do mundo, e não as da rua 15, que procuramos atingir.”

A herança de Emiliano e todo o seu projeto simbolista é fortemente renegada em Joaquim. Surgido no século 19 como oposição ao Realismo e ao Naturalismo, o Simbolismo, que tem em Baudelaire, Verlaine e Rimbaud os seus principais expoentes, teve adeptos no Brasil, como Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens. O Paraná teve severa influência do movimento. O grupo de simbolistas locais era variado e atuante, composto por nomes como Dario Vellozo, Euclides Bandeira, João Itiberê da Cunha, Silveira Netto, Júlio Pernetta, Nestor de Castro e Adolfo Werneck, além de precursores como o historiador Rocha Pombo e o próprio Emiliano Perneta. Nomes que agitaram o cenário local, mas lançaram poucos livros, considerando também que as condições de publicação eram bem adversas na Curitiba do final do século 18 e início do século 19. As edições, quando impressas, eram restritas a grupos pequenos de leitura.

O jornalista Luiz Cláudio Oliveira, autor de Joaquim (en)contra o Paranismo (2009), afirma que, à época de Joaquim, a cultura paranaense estava fechada em si mesma. “Os intelectuais da época de Dalton ainda estavam centrados no projeto de encontrar, mesmo artificialmente, uma identidade paranaense. Tentavam ser herdeiros daqueles grupos da virada do século. Joaquim representava os interesses dos mais novos, os que queriam mudanças e uma maior participação.”

Anúncio livro renegado Dalton
Mas contendas literárias da revista não se restringiam a questões locais. Na edição número 12, em um artigo intitulado “O terceiro indianismo”, Trevisan critica Monteiro Lobato, acusado-o de não ter absorvido as renovações artísticas do Modernismo e da Semana de 22: “Quando um repórter lhe disse que os moços viam nele, por causa de sua prisão na ditadura, um exemplo de resistência, reponde com tais palavras: — Não acredito nesses moços”. Monteiro Lobato é classificado como a máxima concepção do atraso, a verdadeira manifestação caduca e servil de uma pseudo-arte, um escritor póstumo em vida, quando muito, um criador de um terceiro indianismo na literatura brasileira.

A lista não para por aí. Também sobraram farpas para o crítico Gustavo Corção, a quem o periódico acusava de reacionário (“que nos nega o direito de sermos ateus, existencialistas ou indiferentes”), e ao famoso artista plástico norueguês radicado no Paraná Alfredo Andersen. Em contraposição à arte iconoclasta de Guido Viaro — colaborador assíduo da revista —, Andersen é considerado um totem sem razão de sê-lo. “Entre Andersen e Viaro, nós, os moços, preferimos os vivos, que criam a arte dos novos tempos”, diz a crítica.

Outra iniciativa da Joaquim era a irônica e irreverente sessão denominada “Ah! as ideias da província”, que replicava alguns trechos da crítica literária paranaense e claramente espezinhava la haute culture local. Logo na primeira edição, a Gazeta do Povo é notificada pelo jornalismo um tanto disparatado do colunista Barão de Cerro Azul: “O Sr. Valfrido Piloto é o maior prosador paranaense.“

Na edição número seis, a Gazeta do Povo é novamente lembrada em um trecho da coluna do crítico Emanuel Coelho: “Que os paranaenses amantes da cultura visitem e analisem a arte de Edy Carolo, para que mais tarde não se arrependam de não ter adquirido um de seus quadros enquanto vivo...”.

Este viés subversivo, expondo o ridículo do jornalismo cultural participativo da cena e sem critérios senão os do compadrio, é menos intenso depois das dez primeiras edições. É perceptível também que a Joaquim, gradativamente, foi abrindo cada vez mais espaço para a repercussão dos contos de Dalton Trevisan e a aceitação da crítica de seus livros recém-lançados (e futuramente renegados pelo autor, como é o caso de Sonata ao Luar e Sete anos de pastor). As reações à revista (sempre positivas), estas sim, são refletidas desde a segunda edição, como se a validar o trabalho desenvolvido pela publicação.

Estética

Capa Joaquim 16
Além de discutir os rumos culturais do Paraná, suplantar os símbolos locais e publicar o que de mais atual era produzido na literatura nacional e internacional, Joaquim também lançou profundas discussões sobre artes plásticas. Com espaço significante dedicado às ilustrações, o periódico se aproveitava de uma técnica especial de zincogravura (gravura de metal em alto-relevo, adaptada diretamente ao clichê tipográfico) para harmonizar imagem com os blocos de texto, principalmente nas páginas de contos de Dalton Trevisan, usualmente ilustradas por Poty Lazzarotto. Colaboraram com o periódico alguns dos mais importantes artistas modernistas de seu tempo, como Euro Brandão, o próprio Guido Viaro, Esmeraldo Blasi Jr. e Gianfranco Bonfanti, além de Cândido Portinari e Di Cavalcanti, este último ilustrador da capa da décima sétima edição.

“O trabalho gráfico era todo conduzido por ele. Era dado muito valor às ilustrações, houve até mesmo uma edição dedicada especialmente aos ilustradores [edição 19]. Entre texto e imagem há um diálogo bastante cerrado. Para alguns textos, há ilustrações que chegavam a ocupar a maior parte da página, e isso gerava um respiro em relação ao texto. Havia uma busca consciente por um tipo de equilíbrio gráfico, de forma a tornar a revista sempre interessante para o leitor. Isso funciona, tanto que a revista é boa de ler até hoje”, afirma Fabricio Vaz Nunes, autor da tese Relações entre literatura e artes gráficas na revista Joaquim, de 2010, em que analisa o caráter vanguardista do periódico de Trevisan.

As ambições gráficas são apontadas pelo estudioso como inovadoras e essenciais para o entendimento do projeto literário de Dalton Trevisan, sempre comprometido com o desconforto em suas narrativas. “O diálogo entre texto e imagem era inovador, principalmente no que se refere à linguagem, tanto a linguagem textual quanto a linguagem visual. Os ilustradores da revista empregaram um estilo voltado para o expressionismo, no que o uso da zincografia também contribuiu muito. Como Poty mesmo afirmava, os personagens do Dalton têm algo a ver com a técnica da ponta-seca, com muitas tonalidades e camadas, e as gravuras captavam essa característica mordaz e algo incômoda da literatura dele. A Joaquim expandia essa relação”, explica Nunes.

Onde encontrar

Em 2000, a Imprensa Oficial do Paraná imprimiu uma edição fac-símile, de dois mil exemplares, resgatando o legado artístico de Joaquim. Na Divisão de Documentação Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná, é possível encontrar a íntegra do material, essencial para a compreensão da trajetória cultural do estado.