Ficção | Rafa Campos

                                                                                                   Ilustração: Guilherme Paixão/ Thapcom
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Nasci duas vezes, como vocês sabem. A primeira no estábulo de um vizinho da minha família, cercado de animais e suas fezes, observado atentamente por todos os homens da aldeia, que respiraram aliviados quando viram que eu não parecia especificamente com nenhum deles. Pela época, o Imperador Augusto transformava Roma na Roma histórica que todos também conhecemos.

A segunda vez foi quando o decurião Pantera, alistado sob a batuta do governador Herodes, contaminou-me com o vírus intergalático que corria em suas veias, transformando-me no mais célebre dos Upirs, conhecidos por vocês como vampiros, da História.

Tudo bem, alguns de vocês, idólatras, vão dizer que Drácula, o Dragão, é o mais famoso dos Vampiros, e eu, sempre magnânimo, os perdoo, apesar de não poupá-los de uma breve correção. 

Em primeiro lugar, Drácula nunca foi um vampiro de verdade. É uma lenda, como a democracia brasileira depois do golpe de 2016. Ele era, isso sim, um devoto fervoroso das Escrituras, e — como infelizmente aconteceu milhares de vezes em meu nome — um homicida intolerante, racista e celerado.

Bom, sobre as Escrituras gostaria também de lançar alguns esclarecimentos. A parte mais instruída de vocês sabe que o Novo Testamento é resultado da versão latina de coletâneas gregas. Tem muito do idealismo helênico naqueles textos e eu garanto que esse idealismo tem tanto a ver comigo quanto os deputados evangélicos se baseiam na doutrina cristã.

São Jerônimo, o sujeito responsável pela proeza de obscurantismo dos quatro livros, deve ser um dos sujeitos mais malucos que tive o desprazer de encontrar em todas as minhas vidas, recentes e da antiguidade. Não que eu deteste malucos, pelo contrário. João, aquela fina flor de poesia esotérica — e a melhor chupeta ao norte do Rio Jordão, diga-se de passagem — era um maluco inconteste, e um sujeito apaixonante. Meu único amor sodomita, cá para nós. 

Mas Jerônimo era diferente. Pretensioso, soberbo e ultrajante. Tinha muito talento, antes de evitar as mulheres, e secar sua cachola em um deserto inóspito mastigando raízes venenosas, mas suas intenções sempre foram nebulosas, para se dizer o mínimo. 

Quando eu conheci o velho, já de posse da totalidade de minhas habilidades e cercado por meia dúzia de amigos intergaláticos, Jerônimo, que pela primeira vez via algo que não existia somente em sua cabeça, recusou-se a acreditar. Disse que eu, euzinho, Yeshua, o Jesus Cristo, Salvador e Redentor da Humanidade, não passava de uma maquinação do Diabo! 

Bom, Satã realmente estava do meu lado, vestindo somente uma túnica aborígene australiana, com seus cabelos brancos revoltos ao vento do deserto, mas é lógico que Jerônimo não o reconheceu, confundindo-o com Papi, que estava logo atrás. Bom, Papi estava uns cem metros atrás, mas com aquele tamanho todo, a perspectiva acaba pregando umas peças, e o Velho Anacoreta achou que o Criador — ou Deus, como vocês costumam chamar — era o demônio em pessoa.

Vocês devem ter ouvido muitas coisas sobre o meu pai cósmico, a criatura que havia transformado o decurião Pantera em um vampiro que, por sua vez, me transformou. Bom, ele seria meu avô, por essa genealogia, mas costumávamos chamá-lo de Papi, e ele parecia gostar, apesar de ser difícil interpretar as expressões faciais de um caprino metálico de trinta metros de altura. 

O que eu posso dizer sobre Deus? Bom, pra começar, Deus é mesmo um cara extraordinário, e não estou me referindo ao número de braços ou a cauda de escorpião do tamanho de uma locomotiva.

Não, ele é extraordinário porque simplesmente não faz nada, deixando tudo acontecer ao sabor das tempestades solares e buracos negros por esse multiverso afora. Poderia terminar com guerras planetárias somente com um gesto de seus membros titânicos, mas prefere, como o escrivão de Melville, não fazer nada. De qualquer forma, as poucas vezes que Papi interferiu todos os envolvidos morreram, ou ficaram loucos — ou ambos — e muitas vezes uma guerra termina melhor do que a aniquilação absoluta da vida planetária.  

Bom, voltando às Escrituras, é realmente uma lástima o que um bando de velhos eruditos misóginos e racistas conseguem fazer com uma mensagem que era legal, quando eu — com a ajuda inestimável de Pantera e João Batista — escrevemos, lá pelo reinado de Tibério  

Em primeiro lugar, você só “dá a outra face” devidamente trabalhando no bondage e no chicotinho de pelo de camelo, com o corpo devidamente untado de esperma de touro macedônio. Que foi? Achou que na Galileia não tinha sacanagem? E só porque a gente era perifa não podia se divertir? 

Em segundo lugar, o amai os outros como a si mesmo era uma liberação à putaria generalizada com direito a exibicionismo masturbatório. Se falando já parece bom, imagine se você é um vampiro indestrutível e pansexual, cercado por quarenta exemplares de todas as raças do Mediterrâneo se fodendo em todos os buracos. Minha Palavra até sobe, só de lembrar.

Enfim, redijo essa missiva com uma mensagem: Matem todos os juízes de primeira e segunda instância de sua cidade, estado e, se possível, país. Foi um puto desses que mandou me espancarem por horas a fio, me espetarem em uma cruz e me trespassarem com uma lança. Não fossem meus poderes vampíricos de cura, Papi teria vindo dar cabo de todos. Por isso eu digo; ou a humanidade ou os juízes, vocês escolhem.  


Rafa Campos nasceu em São Paulo (SP), em 1970, onde vive. Começou a publicar quadrinhos aos 40 anos, nos jornais Folha de S.Paulo e Cândido. Também é colaborador das revistas piauí, Grafitte e Samba. Tem seis livros publicados: Deus, essa gostosa (2012), Magda (2016), O golpe de 64 (2014, em pareceria com Oscar Pilagallo), Lobas (2016), Velhinhos asquerosos (2015) e O poder do pensamento negativo (2015). Publica a série “Os Bodes”, no site Nocaute e no caderno “Ilustríssima”, da Folha de S.Paulo. O texto publicado nesta edição é parte do novo romance do escritor, JC, O vampiro, que será publicado este ano pela editora Veneta.