Especial | Wilson Bueno

Tinha uma pantera à espreita

Autor que dizia escrever para se salvar de si mesmo, Wilson Bueno deixou um legado de 16 títulos e outros inéditos, nos quais aparecem suas obsessões, o diálogo com alguns autores e uma linguagem que borra as fronteiras entre os gêneros literários 

Marcio Renato dos Santos

                                                                                                        Ilustração: Ricardo Humberto
wilson bueno


Wilson Bueno se considerava poeta. “Sou essencial e fundamentalmente poeta. A minha visada do mundo é a de um poeta.” Assim ele se definiu numa entrevista em 2009. No entanto, no mesmo bate-papo Bueno ressaltou que o terreno em que transitava com mais desenvoltura era a ficção: “Sou, ou penso que sou, um escritor de fronteiras — literal e figurativamente… Estou sempre na fronteira. Sou um escritor de fronteiras e também um ser humano na fronteira entre o pasmo de viver e o sagrado horror à morte, essa pantera.”. 

A principal obra do escritor é um livro de fronteira, um híbrido que mistura gêneros, línguas e linguagens. Mar paraguayo [leia mais aqui] é uma mostra da consciência e conhecimento literários do escritor. A narrativa possui tantas camadas, foi tão bem pensada e escrita que — se por algum mistério — todos os outros livros dele sumissem, Bueno já teria o seu nome garantido no futuro, no mapa da literatura brasileira contemporânea, a partir unicamente da magnífica “canção marafa” que é o seu Mar paraguayo.

Mas é fundamental citar outras realizações literárias do escritor nascido em Jaguapitã (PR) em 1949 e radicado em Curitiba. Em Amar-te a ti sem sei se com carícias (2004), Bueno manipula com maestria a escrita praticada no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX, ou seja: ele recriou uma linguagem literária à moda de Machado de Assis. De acordo com Aurora Bernardini, o romance merece ser sorvido lentamente, como o vinho de colheita rara: “Porém, muita atenção: nas alfinetadas à retórica bacharelesca e aos poetastros que o pó soterrou, nas ironias, autoironias e burlescas recriações de ambiências da época.” 

A obra de Guimarães Rosa, da qual Bueno dizia gostar de ficar no máximo a um metro de distância, para poder consultar continuamente, aparece em sua ficção especialmente na novela Meu tio Roseno, a cavalo (2000). O autor de A metamorfose, uma paixão dele, é o mote e está no título de uma narrativa que Bueno publicou há dez anos, A copista de Kafka. “Este novo livro de Wilson Bueno é um mergulho nos fantasmas do século XX e nos proporciona um texto envolvente, cuja leitura se tem pena de interromper”, comentou, no texto de apresentação, Boris Schnaiderman.

O bestiário, outra obsessão de Bueno, foi objeto de estudo da escritora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Maria Esther Maciel. No livro Literatura e animalidade (2016), Maria Esther observa que — no âmbito da zooliteratura brasileira do final do século XX — figura a obra de Bueno. “Em especial no livro Jardim zoológico, de 1999, o escritor compôs uma combinatória de elementos mitológicos, lendas indígenas, referências culturais brasileiras e hispano-americanas, reescrevendo o viés fantástico de Borges sob uma perspectiva, digamos, mais ‘mestiça’ e também afetiva”, analisa a estudiosa. 

Ainda de acordo com Maria Esther, híbridos, fronteiriços e transnacionais, os bichos de Bueno são marcados pelos cruzamentos culturais advindos do contato entre países do continente sul-americano — o bestiário também aparece, por exemplo, em Cachorros do céu (2005).

Na já citada entrevista que Bueno concedeu em 2009, questionado a respeito do que seria a sua literatura, ele disse que se tratava de uma busca: “A busca, esforçada, com que há décadas procuro, das palavras certas, a mais humana. Com a consciência de que só a palavra não salva, mas a minha parte, queira ou não queira. Eu sou de parte com a palavra (diria o Manoel de Barros)… Nem sei se faço literatura. Escrevo, só isso. E escrevo, antes de mais nada, para me salvar de mim mesmo.”.

E ele escreveu muito.

Reuniu textos veiculados na imprensa curitibana para compor o seu livro de estreia, Bolero’s Bar (1986), trabalhou em O Globo (durante um tempo do seu desbunde carioca, entre 1968 e 1977), esteve à frente do suplemento de cultura Nicolau (1987-1996), foi colunista do jornal O Estado do Paraná e da revista Ideias e fez resenhas de livros para O Estado de S.Paulo.

Mas a pantera, mencionada naquela entrevista de 2009 (“a morte, essa pantera”), se fez presente. Ele foi assassinado no dia 31 de maio de 2010. Em 2011, a Planeta publicou Mano, a noite está velha, memórias revisitadas pela ficção. Entre o material inédito, além da vasta correspondência, há as “Novelas marafas”, sete ou oito relatos em portunhol selvagem, dos quais a Yiyi Jambo Cartonera, do Paraguai, publicou um dos textos, Mascate, em 2015. Apesar da pantera, o legado do poeta que escreveu ficção e poesia ainda vive. Viva o Bueno!

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