Especial | Nicolau - Wilson Bueno

O jornal também faz parte do legado do escritor

Wilson Bueno é conhecido pelas obras literárias experimentais que escreveu, mas sua temporada à frente do Nicolau é capítulo imprescindível em sua biografia


Marcio Renato dos Santos

wilsonbueno


Wilson Bueno tinha dúvidas a respeito da qualidade dos textos que escrevia para o jornal Correio de Notícias, de Curitiba, na década de 1980. Um dia, perguntou ao amigo Paulo Leminski: “Será que os meus textos têm algum valor?”. Leminski teria dito que sim, mas Bueno não se convenceu: “E por que as pessoas só comentam sobre o que você escreve?”. Leminski, então, de acordo com o que Bueno comentava com os amigos, fez uma proposta: “Vamos trocar os textos? Eu assino o que você escrever e você publica os meus.”

O resultado?

Os textos de Bueno, com a assinatura de Paulo Leminski, encontraram recepção entre os leitores do jornal. E os de Leminski, assinados por um quase desconhecido Wilson Bueno, passaram em branco. “Está vendo? Às vezes as pessoas só leem o texto de quem já tem nome. Você precisa continuar publicando. Para se exercitar. E para se tornar conhecido.” Essas palavras, talvez enunciadas de outra maneira, mas com o mesmo sentido, foram ditas por Leminski, após aquela breve experiência de troca de textos, com a finalidade de incentivar Bueno, o jornalista que — naquele contexto — ainda sonhava ser escritor.

Bueno iria estrear com Bolero's Bar, publicado pela Criar Edições em 1986. O livro reúne alguns daqueles textos veiculados na imprensa curitibana, que foram reescritos, e outros inéditos. Na apresentação, Leminski define e, em alguma medida, antecipa o caminho pelo qual o escritor iria seguir em sua trajetória literária: “O seu [estilo] foi sempre um estado limítrofe entre a poesia e a prosa, entre o registro real e uma alta voltagem imagética, de ressonâncias líricas.”

Mas, muito mais do que em Bolero's Bar ou qualquer outro livro ou impresso diário, a plataforma onde Bueno exercitou a linguagem literária e conseguiu divulgar o seu nome, para o Brasil e até para o exterior, foi no Nicolau. A partir de 1987, ele seria o editor da publicação da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná.

Ele era quase onipresente no suplemento.

Basta, por exemplo, conferir, a começar pela edição 3, onde Bueno publica o texto “As influências” — um ensaio sobre o processo criativo. Na edição seguinte, ele apresenta, na contracapa do Nicolau, “Arranjos pedestres”, um texto de ficção. Na página 25 da sexta edição, Bueno mostra um fragmento de Mar paraguayo, livro que ele iria publicar em 1992 — na edição 11 há mais duas páginas, a 12 e a 13, com mais fragmentos de Mar paraguayo. Já na edição 17, o editor do jornal veicula, na página 23, o texto “Manual de zoofilia”, texto que empresta o nome a um livro que ele publicaria em 1991.

E assim foi.

Bueno esteve à frente do Nicolau até a edição 55 e, na 60.ª edição, em 1996, o suplemento deixou de circular.

Os livros mais elaborados e maduros, pelos quais o autor é conhecido, e reconhecido, surgiram após aquela temporada do Nicolau: Meu tio Roseno, a cavalo (2000), Amar-te a ti nem sei se com carícias (2004), Cachorros do céu (2005) e A Copista Kafka (2007) — além do póstumo Mano, a noite está velha (2011).

E até o final de sua vida, interrompida dia 31 de maio de 2010, Bueno seguiu falando sobre o Nicolau. “Incrível, não passam 30, 40 dias em que, até hoje, pasme!, depois de 15 anos de minha saída do jornal e do fim do projeto, que eu não receba um enorme questionário, daqui ou d’além mar, de gente curiosa para saber do Nicolau. Ou porque seja, ainda outra vez, objeto de teses de mestrado, doutorado ou mesmo trabalho de conclusão de curso, nas universidades brasileiras, e não só brasileiras”, disse, em entrevista publicada no dia 5 de outubro de 2009.

O suplemento de cultura também faz parte de seu legado, onde ele experimentou literariamente e conseguiu compartilhar com o público vozes pelas quais tinha admiração, seja a do cubano Lezama Lima ou a do amigo Jamil Snege, entre outros contemporâneos como Paulo Leminski, Manoel Carlos Karam, Roberto Gomes, Valêncio Xavier, Solda, Alice Ruiz e Sérgio Rubéns Sossélla.

Seguir pelas páginas do Nicolau, em edição fac-similar, é ver, rever e confirmar que Bueno também apostou, naquele contexto original, em estreantes, como Ademir Assunção que, agora, tem a sua poesia lida e inclusive endossada, por exemplo, com o Prêmio Jabuti 2013 na categoria poesia.

Ecos de trocadilhos e outras práticas dos anos 1980 tendem a datar o Nicolau, mas ao mesmo tempo uma sensação de liberdade, e voo livre e experimentação autorizados a todos os colaboradores, redimem Bueno de eventuais tropeços durante o percurso daqueles anos que parecem distantes e também muito próximos de 2014.

Foto: João Batista Santana