Especial Lusos | Entrevista

“O cidadão mais  comum é sempre o herói”

Valter Hugo Mãe, escritor angolano radicado em Portugal,  fala sobre seus projetos literários, visão de mundo e a recepção de sua obra no Brasil e na Europa


Thiago Lavado


Desde que Valter Hugo Mãe esteve no Brasil pela primeira vez, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2011, tornou-se uma espécie de celebridade literária do país. Um fenômeno interessante em um país de poucos leitores. Na ocasião, o autor conquistou o público brasileiro com elogios ao país e a vários escritores locais. Três anos depois, o fenômeno Mãe parece consolidado. Em agosto, ele esteve em Curitiba para a 2ª edição do festival Litercultura e mobilizou a cidade e grande número de leitores, que lotaram sua palestra. Com o Cândido, falou sobre a recepção de sua obra romanesca, composta por A desumanização (2013), O filho de mil homens (2011), a máquina de fazer espanhóis (2010), o apocalipse dos trabalhadores (2008), o remorso de Baltazar Serapião (2006) e o nosso reino (2004), todos publicados no Brasil.

Valter Hugo Mãe


Depois da Flip de 2011, o senhor foi muito bem recebido pelo público no Brasil e conquistou muitos leitores aqui. Mas como é a recepção da sua obra no restante da Europa e nos outros países de língua portuguesa?

Sou muito lido em vários países e fui muito bem recebido em diversos lugares. Em alguns melhor que em outros. A França, por exemplo, recebe-me muito bem, a Alemanha também. A Croácia, que é um país que eu não conhecia, tem recebido muitíssimo bem os meus livros. Curiosamente, a Espanha é um país em que minha obra não teve uma recepção muito boa. A crítica excepcionalmente bem, mas o público não lê e não vendo nada na Espanha, que é ali tão ao lado. Mas a Espanha não quer saber muito dos portugueses: somos vizinhos e deve ser isso. Não faço ideia. Publiquei lá a máquina de fazer espanhóis e achei que haveria um interesse muito grande para saber o que é uma máquina de fazer espanhóis. Não houve interesse nenhum, o livro foi um fracasso lá. Fiquei bem puto com os espanhóis por causa disso. A literatura também é uma coisa lenta, leva tempo. Não lemos um livro com a rapidez que ouvimos uma canção ou vemos um filme. A literatura é um investimento demorado. A vida do escritor vai ser sempre pautada por essas esperas e às vezes não adianta nem esperar: não vai acontecer. Vai ter que aceitar assim mesmo.

Valter Hugo
Em a máquina de fazer espanhóis, o personagem principal se chama Antônio Silva e representa o cidadão comum português. Aqui no Brasil temos muitos Silvas também. A partir do conhecimento que o senhor tem do Brasil, há semelhanças entre o “Silva” brasileiro e o português?

Efetivamente, o Brasil parece um lugar de gente que vem direto da terra, de gente que brota, que se mescla. Hoje em dia o brasileiro é essa mistura que acaba por ser ao mesmo tempo um retrato do mundo. Mas é um retrato que só poderia acontecer aqui, que acaba se misturando com o cacau, com a mandioca e creme de milho, que eu adoro, com guaraná. Mas há coisas que se prendem, como essa espécie de proliferação do Silva e que tem uma dimensão muito portuguesa no Brasil. Esses são os Silvas portugueses que vieram pra cá e aqui ficaram. Quando o brasileiro diz que o português foi o colonizador, na verdade o que está dizendo é que eles foram os seus colonizadores. O português colonizou-se aos antepassados dos brasileiros de hoje. São aqueles que escolheram num determinado momento fazer parte desta mistura. É muito interessante perceber as coisas a partir desse nome, porque, de fato, o Silva é isso: é uma coisa que chega e que se alastra, se adapta às condições do lugar, como se fosse endêmica. É uma estrutura orgânica que imediatamente adquire características endêmicas, por isso é um nome muito simbólico. Eu gosto — aliás, creio que é um dos melhores elogios que se pode fazer a Portugal — de apontar o Brasil como um país cobiçado pelos portugueses. É claro que sabemos que o Brasil estava cheio de povos indígenas, mas, como unidade, este território foi cobiçado pelos portugueses. Deve ter sido a única coisa que os portugueses fizeram e tem propensão a dar verdadeiramente certo.

Ainda falando sobre a máquina de fazer espanhóis, o Senhor Silva acorda, um dia, diante da ditadura portuguesa. Aqui no Brasil nós também temos um histórico de ditadura recente e que ainda está muito presente na vida de todos os brasileiros. Como esse assunto é tratado na literatura portuguesa?
Sou absolutamente contra os totalitarismos, seja à esquerda ou à direita. Todas as ditaduras estão sempre erradas, pecam exatamente por esse princípio de que um só indivíduo pensa por todos. Tudo que agrida a democracia, para mim está errado. Ainda que a democracia possa ser deficiente. Eu diria que daquilo que conheço da ditadura brasileira, no fundo, ainda é uma memória mais grave do que a portuguesa. Foi nojenta, mas ainda assim amena, comparada ao que aconteceu no Brasil. Por isso tenho muito respeito por essa memória, que ainda é muito recente, e pelos efeitos dessa ditadura. O descalabro econômico em que a ditadura deixou o país é muito perceptível hoje e ainda percebemos no Brasil algumas dificuldades que vão levar muitos anos para serem ultrapassadas. Mas há aí uma gloriosa expectativa: o Brasil levantou- se e tem estado a se tornar uma potência a nível mundial. Espero que os brasileiros consigam não só respirar, depois de tanta dificuldade, como criar estruturas. É muito importante que esse levantamento não seja ilusório e que a benesse que ele traz não seja desperdiçada, mas canalizada justamente para a estruturação.

Seus personagens são tomados por um sentimento de angústia e solidão, mas, apesar disso, eles têm uma amplitude amorosa muito grande, seja por uma irmã, por uma esposa. Isso também faz parte do autor?
Eu sou uma pessoa cheia de angústias, feita de muitas tristezas. Creio que a vida é terrível para toda a gente, e que nós construímos uma esperança de felicidade em cima de um ponto de partida aterrador, porque, desde logo, tudo que construímos, fazemos sabendo de antemão que vamos morrer e por isso tudo é efêmero. Depois, porque não sabemos quando vamos morrer ou quando vamos perder nossas faculdades, então a efemeridade das coisas pode ser ainda maior do que esperamos. E depois ainda, porque mesmo quando estamos no tempo mais capaz de nossa vida, há coisas que falham ao nosso redor: as pessoas que perdemos, as dificuldades, a existência, as dúvidas, de todo mundo que não acredita em nós. Por isso, eu estou convencido de que o cidadão mais comum é sempre o herói. A resistência para o cotidiano já é uma forma de heroísmo. E eu não sou exceção a isso: minha vida não é tão maravilhosa que me poupe a todas as tristezas. Agora o que eu procuro fazer, e também nos meus livros isso aparece, é dosar a tristeza. Fazer com que ela não seja muita todos os dias. Fazer com que ela seja um componente, mas que não se sobreponha nunca à esperança de se estar melhor.

Em outras entrevistas, o senhor mencionou que, a exemplo de Halla, uma de suas personagens, tinha experimentado a perda de um irmão, de maneira distinta, antes de o senhor nascer. Qual é a parcela de autobiografia que seus livros têm?
Tem sempre alguma coisa. Na maior parte das vezes tem algo que eu não planejei entregar ao livro, mas que ele roubou, quis tomar de mim. Tem que ter coragem para abordar certos temas, porque por vezes abordamos temas que nos magoam, que nos fazem lembrar coisas que talvez quiséssemos esquecer ou que temos guardadas para instantes muito íntimos. E a literatura é toda ela uma forma de remexer nos sentimentos e nas memórias. Em A desumanização acontece esse episódio. Em determinada altura, eu não queria ter comentado ou pensado esse episódio, mas foi impossível deixar de perceber a coincidência do que aconteceu com Halla e o que aconteceu comigo. Mas isso também torna o livro mais valioso, digamos assim. Não usa só o que imaginamos, mas aquilo que já temos como certo, o que dá certa segurança. Escrever sobre o que sabemos é também uma maneira de se ajudar. Embora a literatura seja toda ela uma forma de ir ao encontro daquilo que não sabemos: escrevemos livros porque queremos descobrir alguma coisa, não propriamente porque já saibamos. Os livros são uma mistura do que foi, do que não foi e muitas vezes do que passa a ser. O livro é uma experiência tão profunda na vida do escritor que passa a ser um discurso que tinge todo aquele tempo em que foi escrito. Ele acaba sendo sempre uma forma de autobiografia.

Fotos: Lina Faria