Especial Capa: Os experimentais

As obras de Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Wilson Bueno e Valêncio Xavier tinham pouca conexão entre si, mas estavam ligadas a um traço marcante da literatura curitibana: o gosto pela experimentação

Guilherme Sobota


Dalton Trevisan, o maior escritor paranaense, fez da linguagem o grande trunfo de sua literatura. Para contar as histórias pueris e
karam
corriqueiras que estão em suas coletâneas de contos, empreendeu uma linguagem sofisticada, tão idiossincrática que é o único a praticá-la na literatura contemporânea. Não se sabe se por influência do mestre do conto, mas a experimentação linguística caiu no gosto de muitos escritores curitibanos que vieram depois do Vampiro de Curitiba.

Wilson Bueno (1949-2010), Manoel Calos Karam (1947-2007), Jamil Snege (1939-2003) e Valêncio Xavier (1933-2008) são os escritores mais conhecidos dessa via da literatura curitibana — sem esquecer, claro, de Paulo Leminski, que estreou na literatura com Catatau, um romance absolutamente anárquico.

Além do apreço pela experimentação, os quatro escritores compartilham outra particularidade: apesar de terem passado os anos 1980 escrevendo, foi na década de 1990 que suas carreiras ganharam notoriedade. Em 1992, Wilson Bueno publicou Mar Paraguayo, considerado seu grande livro e em que o escritor constrói um ousado dialeto a partir das línguas portuguesa, guarani e espanhola. Manoel Carlos Karam, já um autor reconhecidamente inventi
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vo, publica Cebola (1997), romance vencedor do Prêmio Cruz e Sousa de Literatura. Em 1998 sai Viver é prejudicial à saúde, a novela de Jamil Snege, único curitibano do quarteto, aclamada por escritores como um dos grandes livros da literatura nacional da segunda metade do século XX. No mesmo ano, Valêncio Xavier, dessa vez aparado por uma grande editora, a Companhia da Letras, reedita O Mez da Grippe, considerado sua obra-prima.

“O Valêncio desejava o público. O Bueno, pelo que me contou numa entrevista, tinha muitas inseguranças. O Jamil, dizem, tinha medo da autofagia curitibana. O Karam parece que era bem resolvido: escrevia, lançava, seguia adiante”, diz o jornalista José Carlos Fernandes, que nos anos 1990 foi editor do Caderno G, suplemento cultural da Gazeta do Povo.

Experimentalis
valencio
mo perigoso

Ao mesmo tempo em que ousadia dos quatro escritores arrebatava a crítica, a opção por uma literatura menos convencional foi um empecilho para o sucesso comercial. Ainda jogava contra, o cenário da literatura nacional nos anos 1990: feiras escassas, bate-papos esporádicos e um mercado editorial ainda acanhado. Por conta disso, como ainda é comum em nossa cena literária, todos se dedicavam a outras atividades profissionais para sobreviver: Karam era jornalista
bueno
de TV; Bueno também deixou sua marca no jornalismo local ao editar o mítico Nicolau entre os anos 1980 e 1990; Snege passou a vida se dedicando a peças publicitárias; e Valêncio Xavier foi funcionário, por vários anos, da Gazeta do Povo, onde escrevia no caderno de cultura. Ainda assim, foram escritores prolíficos, que produziram bastante. Dos quatro, talvez Bueno tenha levado uma vida mais de “literária”, participando de feiras, escrevendo com a ajuda de programas de incentivo artístico (como a Bolsa Vitae de Literatura, do Ministério da Cultura que ganhou em 2000) e sendo publicado em antologias fora do país. Já Snege certamente foi o mais radical. Manteve-se longe das grandes editoras e foi fiel ao modo quase artesanal com que editava seus livros. Em 2003 recusou a proposta de uma empresa paulistana para reeditar toda a sua obra.

“Quando o Valêncio estourou, a gente brincava que ele estava à deriva, num balão, e a gente pulando para pegar a cordinha e trazê-lo de volta à realidade. O Bueno, idem, se deslumbrava, ficava impossível, que nem criança. O Karam e o Jamil eram de fato como príncipes do Oriente: nunca saberemos o que de fato queriam. São espaços vazios — eis a delícia”, diz Fernandes.

Diante de escritores tão singulares, na forma e na maneira de se relacionar com a vida literária, qual o legado que ficou? Há reflexo do “quarteto experimental” na atual geração de escritores curitibanos ou
vilma
mesmo de outros Estados? A prosa poética de Luiz Felipe Leprevost certamente encontra algum diálogo com o texto anarquicamente calculado de Manoel Carlos Karam, de quem Leprevost é leitor fiel. Valêncio Xavier encontrou admirados em escritores da cena paulistana, como Joca Reiners Terron, cujo livro de estreia, Não há nada lá, traz a fusão entre imagem e texto tão presente na obra de Valêncio.

“Acho ainda prematuro se falar nisso [influência], embora o uso do portunhol por parte do Bueno, por exemplo, já tenha encontrado adeptos e seguidores Brasil afora, como em Douglas Diegues, do Mato Grosso”, diz o escritor e tradutor Rodrigo Garcia Lopes. “Mas o Paraná não conhece o Paraná. E o Paraná não é só Curitiba. Vejo possíveis diálogos nas obras de um Jairo Batista Pereira, de Quedas do Iguaçu, de Marcos Losnak, Karen Debértolis e Rogerio Ivano, de Londrina, Ademir Demarchi, de Maringá, Sosséla, de Paranavaí.”