Especial | Bibliotecas

Admirável mundo novo 

Mais do que apenas local para empréstimo de livros, as bibliotecas, públicas ou não, estão se transformando em centros culturais, espaço para convivência, pesquisa e até produção de conhecimento


Márcio Renato dos Santos

                                                                                                                                                                                                                                                              Reprodução

Bate-papos, palestras, cursos, peças de teatro e apresentações musicais são cada vez mais frequentas em bibliotecas no Brasil e em outros países. A Biblioteca Nacional da Argentina, por exemplo, abre espaço para música e outras manifestações artísticas.

Bate-papos, palestras, cursos, peças de teatro e apresentações musicais são cada vez mais frequentas em bibliotecas no Brasil e em outros países. A Biblioteca Nacional da Argentina, por exemplo, abre espaço para música e outras manifestações artísticas.


É fato, uma unanimidade e dificilmente alguém contesta: bibliotecas, há muito tempo, deixaram de ser apenas local para empréstimo de livros. O futuro das bibliotecas, dizem os especialistas, é o de se tornarem centros culturais de acesso ao conhecimento. A bibliotecária Marta Sienna, chefe da divisão de extensão da Biblioteca Pública do Paraná (BPP), observa que a biblioteca pública é o equipamento cultural mais presente em municípios brasileiros. “Na realidade, biblioteca sempre foi um polo cultural, ponto de encontro de diversidades culturais”, comenta Marta. 

“Diferentemente do que imaginamos, as pessoas vão cada vez mais às bibliotecas”, afirma o coordenador de Sistemas da Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Michelângelo Mazzardo Marques Viana. E esse fluxo, mencionado pelo bibliotecário da PUCRS, não diz respeito apenas ao interesse do público por atividades culturais realizadas em bibliotecas de todo o país e do mundo, como palestras, apresentações musicais, debates, sessões de autógrafo e exibições de filmes. “Em geral, as pessoas frequentam cada vez mais bibliotecas em busca de um lugar agradável para se concentrar em leituras e estudos”, diz Viana. 

Para proporcionar esse “lugar agradável”, as bibliotecas devem — na opinião do professor aposentado da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Paulo da Terra Caldeira — contar com amplos espaços e instalações adequadas e acessíveis para convivência de usuários, profissionais, funcionários, e para localização de seus acervos, serviços e atividades. “Os mobiliários devem ser confortáveis, novos e atraentes, com redes eletrônicas, equipamentos e terminais atualizados”, sugere Caldeira, completando que, antes de tudo, as bibliotecas, em especial as públicas, têm de oferecer à comunidade em que estão inseridas todo tipo de informação solicitada pelo público infantil, juvenil, adulto, idoso, portadores de necessidades especiais, alfabetizados ou não. 


O futuro pode ser digital 

Se uma biblioteca pública atende a uma variedade de pessoas, de estudantes a curiosos, uma biblioteca universitária, por exemplo, tem as suas peculiaridades — relacionadas às necessidades de universitários e pesquisadores. A diretora do sistema de bibliotecas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marieta de Moraes Ferreira, defende a ideia da aquisição de livros digitais, seja para contemplar o público jovem e também pelo fato de o e-book, em média, ter o custo menor que o do livro tradicional, o impresso em papel. 

                                                                                                            Reprodução

A Biblioteca de Kista, localizada em Estocolmo (Suécia) foi eleita, em 2015, a melhor do mundo por representantes da Federação Internacional de Associações de Bibliotecas (IFLA). Construída em um shopping center, recebeu destaque por causa de sua arquitetura e design de interiores e pela presença de tecnologias digitais.

A Biblioteca de Kista, localizada em Estocolmo (Suécia) foi eleita, em 2015, a melhor do mundo por representantes da Federação Internacional de Associações de Bibliotecas (IFLA). Construída em um shopping center, recebeu destaque por causa de sua arquitetura e design de interiores e pela presença de tecnologias digitais.


“Mas a compra de livro digital é complexa”, afirma Marieta. Em alguns casos, uma instituição adquire uma assinatura, temporária, de um determinado livro. Em meio a uma crise financeira, pode não haver recursos para renovar o contrato e, caso isso aconteça, o acesso daquele conteúdo “desaparece”. Há 3 bibliotecas no sistema FGV, uma no Rio de Janeiro, outra em Brasília e uma terceira em São Paulo — atualmente, com 10 mil títulos digitais no acervo. 

Desde outubro de 2015, as dissertações de mestrado e as teses de doutorado defendidas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) estão disponíveis apenas em formato digital, sem versão em papel. A universidade tem 28 bibliotecas com 1 milhão de livros físicos e 450 mil e-books. A coordenadora do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU), Regiane Alcântara Eliel, conta que, no passado, houve algum temor em relação à tecnologia, mas as possibilidades digitais se impuseram. 

Anteriormente, comenta Regiane, era necessário comprar 5 unidades de um periódico científico para os cursos de engenharia da Unicamp. Agora, a instituição adquire apenas 1 determinado periódico digital. “Além da economia, o conteúdo [digital] pode ser consultado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo”, diz — e no caso do eletrônico, completa Regiane, há duas modalidades, a assinatura, que deve ser renovada, e a compra perpétua. “No entanto, os alunos da área de humanas têm preferência pelo suporte físico. Mas quem pretende ler artigo científico muitas vezes escolhe o livro digital”, afirma.


Construção de conhecimento 

Após visitar instituições norte- -americanas, no fim do ano passado, Regiane Alcântara Eliel tem uma convicção: a biblioteca do futuro vai produzir conhecimento de maneira compartilhada. Ele conta que, na biblioteca da Universidade de Nova York, há um espaço disponibilizando computadores com programas que permitem, por exemplo, elaborar um mapa inédito e, em seguida, se for o caso, compartilhar o conteúdo. “A tendência é que as bibliotecas, não apenas as universitárias, se tornem espaços para atividades práticas de construção de conhecimento e informação”, afirma Regiane. 

Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e ex-diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, Antonio Miranda — em sintonia com o comentário de Regiane Alcântara Eliel, da Unicamp — comenta que, no século XXI, “após deixarmos a pós-modernidade e ingressarmos na hipermodernidade”, contexto de inteligência coletiva, hiperatualização de conteúdos na internet e de compartilhamento aberto de dados, as bibliotecas precisam se ajustar a estes novos condicionamentos teóricos e tecnológicos. 

Reprodução

A Biblioteca Queens, em Nova York, possui um espaço, o Discover!, para crianças, com amplo acervo e equipamentos, além do design já reconhecido com prêmios pelo fato de proporcionar conforto ao público.

A Biblioteca Queens, em Nova York, possui um espaço, o Discover!, para crianças, com amplo acervo e equipamentos, além do design já reconhecido com prêmios pelo fato de proporcionar conforto ao público.


Miranda diz que, no presente, já começamos a vivenciar uma dimensão de bibliotecas híbridas, em rede, participando de sistemas integrados. “Deixamos para trás a era do ‘poucos para poucos’ — antes da imprensa, quando poucos autores eram lidos por poucos leitores. Passamos para a era do ‘muitos para muitos’ — no período gutenberguiano, que persiste, os livros se multiplicaram e o público passou a ter a escolaridade para participar da democratização do acesso à informação, em escala crescente. Finalmente, estamos na era do ‘todos para todos’, em que qualquer pessoa publica, troca informação, critica, trabalha em forma cooperativa, universaliza o conhecimento”, argumenta. 

Esta nova etapa, observa o professor da UnB, exige novas dimensões e técnicas para o adequado aproveitamento de suas potencialidades: “O futuro das bibliotecas é justamente o de se constituírem em centros culturais de acesso ao conhecimento e de congraçamento e criação coletiva, além da preocupação com o patrimônio cultural de seu entorno, para uso local e sua difusão sem limites.” 

Miranda enfatiza que a “biblioteca do futuro” deve ser um empreendimento dos bibliotecários, de especialistas das áreas culturais e científicas — “ligadas ao ideal do fomento da criatividade, do aprendizado coletivo presencial e à distância, e do acesso à informação como um direito humano e universal”. 

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O joio e o livro 

A gestão de Affonso Romano de Sant’Anna à frente da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), entre 1990 e 1996, deixou como legado o Programa Nacional de Leitura (Proler), além da criação de bolsas para tradução de livros brasileiros e uma reforma do prédio, entre outras ações. Hoje, se estivesse no cargo, Sant’Anna — poeta e ensaísta — diz que desenvolveria projetos “transformando” os celulares em bibliotecas pessoais. “As pessoas podem ter acesso a Machado de Assis e Alexandre Dumas ou, então, ler vários jornais do mundo. Todo mundo tem uma biblioteca nas mãos. Mas nem todos sabem disto”, observa. Ele também gostaria de transformar lan houses em modernas bibliotecas, “onde o jogo estivesse ao lado da leitura.”

Reprodução

A biblioteca da Trinity College, localizada em Dublin, na Irlanda, é um exemplo de “espaço agradável”: o prédio central abriga 200 mil títulos em um cenário onde é possível conferir, entre outras atrações, bustos de mármore de personalidades como William Shakespeare e Aristóteles.

A biblioteca da Trinity College, localizada em Dublin, na Irlanda, é um exemplo de “espaço agradável”: o prédio central abriga 200 mil títulos em um cenário onde é possível conferir, entre outras atrações, bustos de mármore de personalidades como William Shakespeare e Aristóteles.


Desde o advento da internet, na década de 1990, aconteceram inúmeras transformações, inclusive no universo da informação e, de acordo com Sant’Anna, nem todas as pessoas perceberam as mudanças. “Antigamente, havia a noção de que o ‘mundo era um livro’. As coisas estavam escritas e os mais sábios liam até estrelas e as vísceras dos animais. Hoje, o mundo é um livro, mas diverso: todo mundo tem acesso à informação e até à palavra escrita. Mas, agora, a informação não tem dono, vem daqui, vai para lá. Não vem de cima, não vem de um ponto certo. Os mais atentos tentam selecionar o que interessa e montam um significado possível”, teoriza. 

O discurso de Sant’Anna diz respeito, e muito, a bibliotecas. “Afinal, hoje estamos vivendo o excesso de informação. O livro se tornou uma banalidade. Quem frequenta uma Bienal do Livro fica pasmo diante de tantos ‘descartáveis’. Nosso problema, hoje, é diferente do de ontem. Agora, trata-se cada vez mais de selecionar a informação. E isto tem lá suas complicações”, afirma, acrescentando que o desafio que se apresenta aos leitores, aos bibliotecários e aos gestores de bibliotecas será, de fato, selecionar o conteúdo. 

Marta Sienna, da BPP, dialogando com Sant’Anna, afirma que a biblioteca do futuro, enfim, deverá viabilizar acesso rápido à informação, e não mais, por exemplo, atuar apenas acumulando acervo por meio de aquisição de livros e/ou outros materiais. “Porém, a biblioteca precisa acumular informação nova de confiabilidade, mas ainda preservar a integridade da informação através dos tempos. E nunca pode perder o seu foco de disseminar a informação e incentivar a leitura”, afirma Marta.

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