Especial | 100 anos de A metamorfose

A metamorfose do Moska

O cantor e compositor Paulinho Moska comenta a sua passagem pelo Inimigos do Rei, banda que fez sucesso em todo o país no final da década de 1980 com uma canção que faz referência a Franz Kafka


Marcio Renato dos Santos
Foto: Divulgação
A metamorfose, de Kafka, fez a cabeça de Moska: “A história de um homem que acorda transformado em um inseto monstruoso me arrebatou
A metamorfose, de Kafka, fez a cabeça de Moska: “A história de um homem que acorda transformado em
um inseto monstruoso me arrebatou

Em 1989, a banda carioca Inimigos do Rei lançou um álbum homônimo que obteve ressonância imediata em âmbito nacional. A primeira canção a tocar nas rádios, num contexto sem internet, foi “Uma barata chamada Kafka”. “Chegou ao primeiro lugar no Brasil inteiro no mesmo dia em que foi lançada”, lembra Paulinho Moska. 

A ideia da canção surgiu num ensaio. O baterista Marcelo Marques teria dito: “Vem cá ficar(Kafka)/comigo”. Em seguida, Luiz Guilherme, o letrista oficial da banda, escreveu a letra inteira, após ler A metamorfose, de Franz Kafka, e uma obra de Clarice Lispector que também tem um inseto no enredo, A paixão segundo GH. 

“Tocávamos a canção, que já fazia muito sucesso, em bares e pequenos shows no Rio de Janeiro, antes de sermos contratados pela SONY. A banda tinha dois anos de existência quando gravamos uma fita cassete com cinco canções produzidas pelo mutante Sérgio Dias Baptista, o nosso primeiro padrinho”, conta. 

Mas o sucesso de “Uma barata chamada Kafka” não estimulou, por exemplo, a produção de reportagens, comentários ou reflexões sobre o autor tcheco. “Como era uma música de humor, cantada por uma banda escrachada, formada por atores e cantores que não tinham pudor nenhum do ridículo, fomos confundidos com um produto descartável e sem muita importância. Não houve nenhuma discussão ou comentário contundente sobre o Kafka ou A metamorfose”, lamenta o cantor e compositor desde a década de 1990 em carreira solo. 

Moska, um dos vocalistas, deixaria o Inimigos do Rei em janeiro de 1991, depois de a banda se apresentar no Rock in Rio II. Ele mostrou novas canções e a recepção não foi positiva: “Disseram pra eu usar em um álbum solo. Eles queriam avançar no projeto de música de humor, que não era exatamente o que eu queria pra minha vida. Sempre quis ser um compositor livre e a ideia de ter um rótulo, no caso, o de ‘engraçadinho’, me incomodou muito.” 

Atualmente, Marco Lyrio (guitarra), Marcelo Crelier (baixo) e Marcelo Marques (bateria), três dos sete integrantes da formação original, seguem em atividade, mas agora a banda se chama INIMIX. 

Mergulhar no que é único 

Moska afirma que para escrever canções é necessário ler, se aprimorar e desenvolver uma linguagem pessoal: “Aos poucos, fui percebendo que cada escritor, poeta ou letrista que eu gostava tinha uma assinatura. E é isso que eu busco. Um jeito meu de fazer as coisas”, diz o autor, entre outros, dos álbuns Vontade (1993), Pensar é fazer música (1995), Contrassenso (1997), Móbile (1999), Eu falso da minha vida o que eu quiser (2001), Muito pouco (2010) e de Loucura total (2015), este em parceria com o argentino Fito Paez. 

Inimigos do Rei no fim da década de 1980: sete jovens que usavam a linguagem pop para falar de qualquer assunto, até de Franz Kafka.

Inimigos do Rei no fim da década de 1980: sete jovens que usavam a linguagem pop para falar de qualquer assunto, até de Franz Kafka.

O compositor, há alguns anos  apresentando o programa Zoombido, exibido no Canal Brasil, acredita que as “deficiências”, ou peculiaridades, de um artista podem se transformar em diferenças, resultando em um tipo de escrita, linguagem ou dicção que só aquele poeta, letrista ou escritor sabe fazer. “Kafka fez isso: foi fundo na própria singularidade”.

Ele diz ter entrado em contato com A metamorfose na primeira metade da década de 1980, período em que estava lendo textos de Carlos Castañeda Charles Bukowski, Jack Kerouac e T.S. Eliot. “A contracultura, os outsiders, os beatniks e outros autores visionários tinham algo de lisérgico, mas a história de um homem que acorda transformado em um inseto monstruoso me arrebatou. Apesar de, naquele contexto, ser um garoto extrovertido, sentia uma sensação de desajuste em relação ao mundo”, conta o artista carioca, acrescentando que a sensação de estranhamento é forte em sua vida, ainda hoje, aos 48 anos. 

A letra

Uma barata chamada Kafka
(Luiz Guilherme, Marcelo Marques e Paulinho Moska)
Encontrei uma barata na cozinha
Eu olhei pra ela ela olhou pra mim
Ofereci a ela um pedaço de pudim
O curioso foi que ela
Ela disse sim vem cá ficar comigo
Sim! Gosta de tudo que eu gosto
Sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Vem, Kafka
Ofereci a ela um disco do Sex Pistols
Ofereci a ela uma batida de limão
Perguntei se ela gostava dos Beatles
Perguntei se ela era de escorpião
Ela disse sim vem cá ficar comigo
Sim! Gosta de tudo que eu gosto
Sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Vem, Kafka
Você mora na Barata Ribeiro num edifício
Que tem um buraco perto do chuveiro
Já se drogou com detefon, insetizan, fumou baygon
Tudo quanto é tipo de veneno você acha bom
Sim! Vem, Kafka comigo
Sim! Gosta de tudo que eu gosto
Sim! Vem cá ficar comigo
Sim! Vem, cá ficar com nós
Como posso evitar essa coincidência
Encontrar uma barata com a minha aparência
La cucaracha, La cucaracha! tome cuidado com a sandália de
borracha
La cucaracha, La cucaracha! tome cuidado com a sandália de
borracha