Entrevista | Toninho Vaz
Livre para publicar
Autor de livros sobre Paulo Leminski, Torquato Neto, Luiz Severiano Ribeiro e Santa Edwiges, o jornalista fala de sua trajetória e comenta a liberação das biografias não autorizadas no país
Omar Godoy
Autor das biografias de Torquato Neto e Paulo Leminski, Toninho Vaz atualmente trabalha em um livro sobre o músico Zé Rodrix, morto em 2009.
A entrevista aconteceu no calor do momento, logo após o Supremo Tribunal Federal derrubar a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias no Brasil (único país democrático do mundo em que esse tipo de censura ainda existia). Como era de se esperar, Toninho Vaz estava satisfeitíssimo, pois viu seu livro sobre Paulo Leminski ser liberado automaticamente pela Justiça. Em 2013, as herdeiras do poeta vetaram a reedição de O bandido que sabia latim alegando “violação à intimidade e honra” do biografado e de sua família. A obra foi lançada originalmente em 2001, com o consentimento da viúva e das filhas de Leminski, mas a inclusão de um trecho sobre o suicídio do irmão do poeta azedou a relação entre as duas partes. O papo, no entanto, não ficou limitado ao tema espinhoso. Jornalista com mais de 40 anos de carreira e passagens por vários veículos importantes do país, o curitibano também falou sobre sua trajetória, o futuro da profissão e as outras biografias que produziu (Torquato Neto, Santa Edwiges, Darcy Ribeiro, Luiz Severiano Ribeiro), entre outros assuntos. Antes do fechamento da edição, ele ainda revelou uma novidade: começou a negociar, com uma “grande produtora brasileira”, os direitos de O Bandido... para o cinema.
Os ministros do STF acabaram de decidir pela liberação de biografias sem autorização prévia. Como você avalia todo o processo de discussão do tema, que culminou com o julgamento desta semana? Quem ganhou e quem perdeu com isso, no fim das contas?
A exigência de autorização para as biografias é parte da nossa história das trevas, das poucas liberdades e da tacanhez cultural. O nome certo é censura. A nossa Constituição deve ser respeitada — e os biógrafos venais, mentirosos, punidos. O que aconteceu no STF foi o resgate de um equívoco judicial em forma de Código Civil. A sociedade ganhou, ganharam os libertários. Perderam os reacionários, aqueles que apostam nas trevas, no silêncio. Como disse a Ministra Cármen Lúcia: “Cala a boca já morreu”.
Você acredita que agora haverá um boom de biografias no mercado editorial brasileiro?
Não tenho certeza disso, mas certamente vai ficar mais fácil pesquisar e publicar obras biográficas. Parte da ameaça foi afastada, mas as armadilhas estão sempre por aí.
Como fica a situação da sua biografia do Paulo Leminski (cuja reedição não foi autorizada pela família do poeta) após a decisão do STF?
Em princípio o livro está livre para ser editado, mas já fui avisado que as herdeiras do Leminski vão tentar impedir o uso de poemas, qualquer poema dele, alegando direitos autorais. Já que não podem mais censurar, elas agora prometem apelar para a mesquinharia intelectual. É lamentável que façam isso em nome de um poeta libertário.
A família do Leminski alega que o veto tem relação com um trecho acrescentado à obra, sobre o suicídio do irmão do poeta. Segundo as herdeiras, as informações incluídas exploram “fatos trágicos” e “não contribuem para elucidar a personalidade e a obra do biografado”. Este é o único motivo ou há outros?
O trecho de oito linhas foi usado apenas como pretexto por elas, pois não existe nada de errado nele. Elas nunca me pediram para retirar as oito linhas, por exemplo. E sendo sobre o suicídio do irmão dele, é curioso que a família de Pedro Leminski, com a qual sempre tive um bom relacionamento, nunca tenha me hostilizado. A rigor, o livro censurado tinha o mesmo conteúdo das três edições anteriores. Como justificar a censura, então? Quando elas alegam que deveriam receber dinheiro para permitir a publicação, acredito que estão mais próximas do real motivo que as levaram a tomar uma atitude idêntica a de María Kodama, a viúva de Borges, que depois da morte do poeta “sentou” em cima de sua obra e não permite nem homenagens se não houver dim-dim. Elas pensam como o Djavan, que biografia gera muito dinheiro. É a tacanhez cultural. Mesmo com a decisão do STF, pretendo manter na justiça uma ação por perdas e danos que já está correndo.
Você leu Passeando por Paulo Leminski, livro de memórias do Domingos Pellegrini? O que achou?
Li e não gostei. As memórias do Pellegrini referem-se, sobretudo, a um Leminski em decadência, já depauperado física e mentalmente, abatido pela doença. Muito diferente do Leminski que eu conheci em 1970, no auge da forma física (era judoca) e intelectual, então com 25 anos, e com quem convivi até o fim. Nada contra o direito do Pellegrini de escrever e publicar o livro, cuja batalha tem muitos méritos, mas guarda uma visão limitada do personagem, deixando a impressão de que o poeta foi “apenas” aquilo. Veja: a censura aos nossos livros aconteceu no mesmo momento, mas ele foi o primeiro a saber e imediatamente saiu em defesa das nossas posições. Mas o Pellegrini, que morava em Londrina, não engana o leitor e nem promete outra coisa além da sua convivência com Leminski, que morava em Curitiba. Tudo certo. Vale a pena lembrar, então, que o livro de cartas trocadas entre Regis Bonvicino e Leminski, Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica, também estava sob censura e agora foi liberado.
Há quem diga que você planeja escrever uma biografia de Dalton Trevisan. Essa informação tem algum fundamento?
Nunca pensei nisso. Acredito que pessoas mais próximas do Dalton e de suas histórias estejam mais qualificadas. Mas é um grande personagem. Se me convidassem, e o convite partisse de fonte qualificada pela estima, eu aceitaria.
Existem outras personalidades paranaenses que você gostaria de biografar?
Nenhuma, particularmente. Anos atrás, tentei fazer em parceria com a jornalista Miriam Karam, de Curitiba, uma abordagem de personagens e histórias do folclore da cidade, suas lendas e mitos, através de um edital da Fundação Cultural de Curitiba, mas não fomos classificados. O escritor Wilson Bueno é outro bom personagem, por isso mesmo já tem alguém pesquisando a vida dele.
Nos anos 1980, o biógrafo colaborou com o jornal Nicolau, editado pelo escritor Wilson Bueno (à esquerda).
Você acredita que os seus biografados têm uma característica em comum? Alguns deles são outsiders, malditos, contraculturais.
Sim, com relação aos poetas. Mas eu escrevi também a biografia parlamentar do Darcy Ribeiro, senador; sobre o homem de cinema Luiz Severiano Ribeiro, um cearense, e Edwiges, a santa libertária. Além da história do Solar da Fossa, fenômeno carioca que também é repleto de outsiders. Estas escolhas refletem o status da minha geração, da contracultura, eu sou filho da contracultura.
Como você encara a tarefa de produzir uma biografia por encomenda? O processo é diferente?
Sim, é diferente. Eu escrevi a biografia de Edwiges a convite da editora Objetiva, que estava lançando uma coleção sobre santos. Já haviam sido editados São Francisco e Santa Teresa e me deixaram escolher a santa. Inicialmente, tentei escrever sobre São Jorge, o santo dos cariocas, mas descobri que a vida dele era na verdade limitada ao primeiro São Jorge, um centurião que nasceu na Capadócia e de quem pouco se sabe. Depois dele, todo e qualquer centurião que se recusava a matar cristãos e era sacrificado por isso passou a se chamar São Jorge. Acabei optando por Edwiges depois de assistir a uma impressionante missa dominical da igreja de Santa Edwiges em São Cristóvão, no Rio. E percebi o desespero e a aflição das pessoas endividadas com o burgo mestre. Num certo sentido, é a santa nacional.
Quem é o seu “personagem dos sonhos” como biógrafo?
Durante anos tentei fazer uma biografia completa e moderna do maestro Villa-Lobos, abordando sobretudo o tempo em que ele viveu em Paris e Nova York, um relato ainda inédito. Na época, comuniquei a minha intenção a Turíbio Santos, então presidente do Instituto Villa-Lobos (onde se concentram os arquivos do maestro) e fui abençoado por ele. Mas o orçamento de R$ 600 mil para a produção determinou que eu deveria procurar a Lei Rouanet ou algo parecido. Como trabalho sozinho, apenas com uma advogada para questões jurídicas, nada consegui. Mas ainda acho um absurdo a falta de informação sobre o genial maestro. A biografia que existe, do professor Vasco Mariz, com todo o respeito, foi escrita em 1959 e ignora a vivência dele em outras cidades.
Por que você saiu da editora Record?
Porque a editora se comportou mal comigo. Romperam uma cláusula importante de um contrato e ainda queriam dizer que o errado era eu. Mas a justiça definiu a questão e a editora teve que me indenizar. Desde então, passei a ser tratado como inimigo mortal da Record, que através do Sindicato dos Editores de Livros, presidido por uma representante da família, me afasta dos eventos produzidos por eles, como as bienais e a Flip, de Paraty. Mas eu não vim para este mundo para me alinhar com coisas antigas e viciadas.
Como é, em linhas gerais, o seu método de trabalho como biógrafo?
A biografia nada mais é do que uma reportagem grande, completa, sobre um único tema, o personagem. Claro que tenho liberdade de puxar o texto para as nuances do romance, nada impede. Até hoje, entre centenas de entrevistas feitas para todos os meus livros, não existe nenhuma que eu não tenha feito pessoalmente, olhando nos olhos dos entrevistados. Eu reconheço que sei perguntar. Costumo gastar um ano na pesquisa e outro escrevendo.
Quais os biógrafos, brasileiros e internacionais, que mais influenciaram o seu trabalho nessa área?
O Fernando Morais e o Ruy Castro são mestres, mas sempre gostei de biografias, antes de elas surgirem modernas. O trabalho do João Máximo, com Noel Rosa, é sério. Certa vez, fui influenciado por um livro específico, a biografia do baixista Jaco Pastorius, do grupo Weather Report, escrita pelo jornalista nova iorquino Bill Millkoski, ligado a revistas de jazz. Nunca foi traduzida para o português. Eu sabia que o Jaco teve um fim trágico, mas não sabia o que tinha acontecido com ele. Devorei o livro em duas noites. Por coincidência, foi a última biografia que eu li antes de começar a minha primeira, do Leminski.
Vaz foi amigo próximo do escritor e político Darcy Ribeiro, de quem escreveu a biografia parlamentar.
Qual dos seus livros foi o mais difícil de desenvolver?
A biografia de Torquato Neto, certamente. A primeira edição, feita em parceria com a editora Record, foi impugnada pela viúva do poeta quando estava para ir para as máquinas. Depois de cinco meses de negociação, a editora capitulou e me ofereceu o recurso do distrato, ou seja, mesmo com o contrato assinado (já estava para rodar) os originais voltaram para mim. A editora perdeu o dinheiro que me havia adiantado meses antes. Dois dias depois do distrato, recebi um telefonema de uma editora paulista chamada Casa Amarela (da revista Caros Amigos) se dizendo disposta a correr o risco e lançar o livro sem consultar a viúva. Assim foi feito. Não houve represália, mas o livro ficou praticamente inédito, pois nunca estava disponível nas livrarias. A tiragem era mínima e o livro acabou definhando. A segunda edição, que saiu pela editora Nossa Cultura, de Curitiba, e está nas livrarias, foi autorizada pelo filho do poeta, Thiago Nunes, que garantiu liberdade total de expressão. Lançada em 2013, está levando uma vida bastante saudável.
Como foi sua vivência como jornalista nas redações do Paraná?
Comecei escrevendo sobre cinema, como hobby, para o editor Aroldo Murá, no suplemento cultural do Diário do Paraná, por onde já tinham passado Paulo Leminski, Sylvio Back, Lelio Sotto Maior, o pessoal do grupo Áporo. Foi o primeiro contato. Depois, com carteira assinada, fui para o Diário da Tarde, do grupo Gazeta do Povo, onde o meu editor era o Celso Nascimento, ainda hoje na praça Carlos Gomes. Fiz trabalhos regulares para o jornal católico Voz do Paraná, também editado pelo Murá. Sempre caprichei no figurino e considero esta experiência fundamental para minha adaptação nas redações cariocas, onde cheguei em 1974.
Em 2014, a Biblioteca Pública do Paraná lançou uma reedição impressa do jornal Nicolau, publicado pela Secretaria de Estado da Cultura entre 1987 e 1996. Sabe-se que você foi um grande divulgador da publicação, mesmo morando fora de Curitiba. Fale dessa época e da importância do Nicolau.
Sim, eu era amigo do editor Wilson Bueno. Nessa época eu morava no Rio e viajava pelo mundo como editor de televisão. O Bueno (ele não gostava de ser chamado de Wilson) achou interessante eu me tornar um repórter itinerante sempre que possível. Foi assim que criamos algumas coisas juntos. Relatos de New Orleans, Nova York, Paris, Cuba, etc. Em Nova Orleans eu procurei e achei o metro quadrado onde nasceu o blues; de Londres, eu trouxe um ensaio fotográfico de Sue Cunninghan, amiga de Sting, que estivera com ele fotografando na Amazônia. O Bueno gostava muito da entrevista que fiz com o Paulo Francis, em seu apartamento na Rua 47, em Manhattan. O título escolhido pelo Bueno: “O senhor das polêmicas!”. O Millôr chegou a citar a entrevista na sua coluna do Jornal do Brasil. Lembro que aproveitei a viagem e deixei alguns exemplares do Nicolau na New York University, setor de língua portuguesa. Sou suspeito, mas considero o Nicolau um dos marcos da cultura paranaense moderna. E mais: será que alguém já percebeu a riqueza do nosso parque gráfico e dos nossos designers?
Mesmo estando fora das redações, como você vê as mudanças radicais que o jornalismo e a profissão de jornalista estão passando nos últimos anos? Acredita que a atividade como nós a conhecemos está “ameaçada”, como alguns profetizam?
Eu acho que o jornalismo já mudou sua feição, misturado às outras fontes de informação. Eu costumo dizer que, como jornalista, venho do linotipo, passei pelo offset e cheguei na web. São formas, não conteúdo. Como disse recentemente o professor Umberto Eco, “Os imbecis foram aceitos e acomodados nas redes sociais, onde ganharam voz e podem emitir opinião”. Nada mais é sagrado. Mas cuidado com a informação, quando equivocada ela pode trabalhar contra você.
Quais são seus próximos projetos?
Estou retomando contato com editoras, pois já iniciei pesquisa para escrever sobre o fantástico Zé Rodrix, um músico genial e uma pessoa surpreendente. Depois de alguns meses de pesquisa, estou convencido da riqueza do personagem — de quem pouco se conhece, não fosse ele um aplicado membro da maçonaria brasileira. Neste caso, tenho o apoio da família: a viúva Julia e os seis filhos concordaram. Mas ainda não tenho editora.