Entrevista | Roberto Prado

"A separação  da poesia escrita e cantada é arbitrária"

Ivan Santos



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O poeta e letrista curitibano Roberto Prado é, até o momento, autor de apenas um único livro publicado, a coletânea de poemas Sim senhor às suas ordens isto é um motim (1994). Mas ele assina dezenas, talvez centenas, de letras de canções, algumas criadas em parceria — gravadas, entre outros, pelas bandas Beijo AA Força, Maxixe Machine e Fato. Prado transita pela poesia e pela letra de canções e, nesta entrevista, diferencia as duas vertentes artísticas. “A letra de música tem as mesmas exigências do poema. Com a diferença de que pode contar com o suporte melódico/harmônico da canção. Às vezes, o texto sozinho, sem este suporte, pode-se revelar mais fraco que o cantado, como se sentisse a falta de alguma coisa”, diz o poeta. Ele também fala sobre a cena poética e musical de Curitiba e critica a falta de agentes culturais que façam o meio de campo entre artistas e público: “Por incrível que pareça, não existem empresários especializados na área cultural. Talvez seja um problema de desenvolvimento econômico, uma falha em nosso capitalismo rudimentar, que ainda não sabe comercializar bens culturais, assim como não consegue desenvolver ciência e tecnologia próprios. O povo tem uma palavra boa pra definir isso: somos ‘jacus’.”

Para você, o interesse em produção literária/poesia surgiu simultaneamente à música, ou algo veio antes e puxou a outra?

Chegou junto, desde muito piá. A minha geração teve o privilégio de acompanhar o nascimento de uma poderosa geração de poet heroes da música popular. Chico, Caetano, Gil, Torquato, Milton, Tom Zé, Vandré, Mutantes e tantos outros, o próprio Vinicius, já consagrado em livro. Fora os internacionais. Claro, óbvio e evidente que também devorei avidamente todos os poetas por escrito que encontrei pela frente. Não domino nenhum instrumento, toco violão para mim mesmo e arranho canções, mas não a ponto de compor. Sou letrista e ouso dar os meus palpites no ritmo, na divisão, na melodia.

A literatura em geral e a poesia em particular são vistas muitas vezes como algo distante da realidade das pessoas comuns, “intelectualizado” demais, ou pra usar um termo popular — “cabeça”. Você acha que a união da poesia com a música ajuda a atingir um público mais amplo, que normalmente não leria poesia?

Sem dúvida. Pouca gente tem cultura musical e literária suficiente para perceber o ritmo, o encadeamento, o batuque das sílabas, das palavras e do silêncio existentes em um poema por escrito. A música ajuda a deixar este aspecto mais evidente. Mas o ideal seria educar as pessoas para que elas próprias fossem capazes de elaborar mentalmente as melodias presentes na poesia. Quando você aprende a ler, o poema é uma diversão, um prazer, uma aventura do espírito. Mas às vezes a poesia pode ser realmente difícil de engolir e digerir. Nesta hora, temos que lembrar que a mente, o cérebro, necessitam de vez em quando de algo com mais sustança, mais fibra, mais conteúdo concentrado. Não se forja indivíduos livres, saudáveis e mais felizes alimentando a alma apenas com miojos e bolachas recheadas culturais. Às vezes o desafio, o mistério, o grau de dificuldade de uma obra é o que a torna essencial.

Acha que o trabalho da geração de poetas/músicos da qual você faz parte reflete de certa forma o “ethos” da cultura e do “homem” curitibano?

Creio que sim. Nas obras desse grupo você encontra doses generosas de humor ácido e vemos a alma provinciana esquartejada sem dó, a (auto) crítica feroz e sem limites, o aproveitamento de temáticas locais por mais banais e jacus que pareçam, a profunda integração entre vida e obra, mesmo que esta não seja sempre, necessariamente, autobiográfica.

Qual a diferença entre escrever  poesia e compor letra de música?


Acha que a poesia exige um rigor formal e uma preocupação com inovação estética que a letra de música não necessariamente tem? A letra de música tem as mesmas exigências do poema. Com a diferença de que   ode contar com o suporte melódico/ harmônico da canção. Às vezes, o texto sozinho, sem este suporte, pode-se revelar mais fraco que o cantado, como se sentisse a falta de alguma coisa. Em outras, ele sobrevive  tranquilamente no silêncio do papel. Na realidade, historicamente, a poesia publicada em livros  é uma linguagem bem mais nova que a canção. Passaram-se milhares de anos até aparecer o primeiro poema publicado. A poesia da antiguidade era cantada. Os poetas de Provença, como Arnaut Daniel, alcançaram níveis elevadíssimos  de qualidade literária, musical e, sobretudo, de capacidade inventiva. A separação da poesia escrita e  antada é, na maioria das vezes, uma divisão arbitrária.  Só para citar dois exemplos famosos, o Caetano Veloso e o Walter Franco musicaram poemas ditos “visuais”, concretos. O rigor formal e a inovação estética podem   e na minha opinião, devem) estar presentes nas duas modalidades. 

poesia e a literatura são vistas muitas vezes como algo mais “nobre”, “alta cultura”, diferentemente da música popular, que por vezes é vista como algo banal, comercial ou até “vulgar”, baixa cultura, afinal. Como você vê essa relação? Acha que essa é uma visão já totalmente superada?


Deveria estar, pois é uma visão falsa, limitada e sem nenhum embasamento científico, histórico. Shakespeare era popular, lotava teatros e não deixou de ser o que é e ter a importância que teve. No Brasil, temos uma brutal ignorância nos dois sentidos, poético e musical. O ensino da música deveria ser parte integrante do currículo desde o primeiro ano e não existir apenas na forma de aulas extras em colégios particulares. A música é um patrimônio multimilenar da espécie humana, uma parte integrante da sensibilidade e da inteligência do cidadão. Sem uma educação específica nesta área, a maioria das pessoas vira massa, vira presa fácil da ganância da indústria e do comércio culturais. Aí, dá a impressão que música é porcaria. Mas se o povo começar a ler, vai descobrir que existe muita porcaria escrita também...

Como vê a relação dessa produção musical-literária curitibana com o público?


Em Curitiba, a criação literária, poética e musical se desenvolveu anos- -luz à frente do mercado. Onde estão os managers? Falta capitalismo. Para comprovar isso, basta observar que o artista local não conta com quase nenhum suporte profissional para viver da sua arte. Por incrível que pareça, não existem empresários especializados na área cultural. Talvez seja um problema de desenvolvimento econômico, uma falha em nosso capitalismo rudimentar, que ainda não sabe comercializar bens culturais, assim como não consegue desenvolver ciência e tecnologia próprios. O povo tem uma palavra boa pra definir isso: somos “jacus”. Existe produto, existe público, existe um razoável circuito de casas de espetáculos. Falta alguém que intermedeie profissionalmente os nossos artistas e os faça presentes de forma decente diante do público local, nacional, mundial. Os criadores, em geral, são péssimos divulgadores da sua arte e piores ainda vendedores do seu trabalho. Precisamos de um choque de capitalismo nesta área. Por incrível que pareça, somos trabalhadores em busca de patrões. Pois tocar em botecos por duas mariolas, uma gasosa Cini e um pão com banha não dá camisa a ninguém e é uma vergonha para uma cidade onde rola tanto dinheiro.