Entrevista: Marcos Damaceno

marcos
“Curitiba não é uma cidade para amadores”

Autor de elogiada peça que satiriza a cena teatral curitibana, o diretor e dramaturgo Marcos Damaceno fala sobre as idiossincrasias da cidade que é matéria-prima para seu trabalho

Luiz Rebinski Junior


Marcos Damaceno criou a companhia que leva seu nome em 2003. Em pouco tempo, transformou-se em um dos principais nomes da dramaturgia curitibana, ganhando fama e elogios para além das fronteiras de São José dos Pinhais, a cidade que separa Curitiba do eixo cultural do país. Mas, diferentemente de Luis Melo, o ator que Damaceno resolveu homenagear em uma de suas peças mais famosas — o monólogo Árvores abatidas ou para Luis Mello —, o dramaturgo e diretor permanece à sombra dos Pinheirais. Continua trabalhando em Curitiba, o que potencializa ainda mais seus feitos.

Aliás, a cidade não apenas dá guarida às criações do jovem diretor, mas também serve de inspiração para os trabalhos criados ao lado de Rosana Stavis, companheira dentro e fora dos palcos. “Particularmente, tenho em Curitiba e no curitibano, rica e inesgotável fonte de inspiração”, diz o diretor paulista, que desde menino é curitibano.

Do começo dos anos 2000 até aqui, Damaceno e sua trupe produziram cinco espetáculos. Três deles de autoria de Damaceno — Água revolta (2003), Sobre tempos fechados (2007) e Árvores Abatidas ou Para Luis Melo, (2008) — e outros dois de importantes nomes do teatro contemporâneo mundial — Psicose 4h48, de Sarah Kane (2004) e Sonho de outono, de Jon Fosse (2005). O diretor e sua companhia acabam de estrear novo espetáculo, Para o Vampiro — Variações n.º 1, mais uma vez escrito por Damaceno e com Curitiba como personagem.

Durante três anos, Damaceno comandou o Núcleo de Dramaturgia do SESI-PR, uma elogiada iniciativa que visa revelar novos nomes do teatro local. Com o devido conhecimento de causa, na entrevista que segue, Damaceno traça um painel sobre a cena teatral curitibana e elenca os prós e contras da cidade que há quase duas décadas é berço do principal festival de teatro do país.

Você é autor de peças elogiadas, como Sobre tempos fechados e, a mais recente, Árvores abatidas ou para Luís Melo. Mas também tem feito sucesso dirigindo textos de outros autores, como Sarah Kene (Psicose 4h48). Há diferença entre dirigir o próprio texto em relação a trabalhos de outros autores?

Sim. Mas cada caso é um caso. Ao dirigir encenação de texto de outro autor se tem, via de regra, maior distanciamento crítico. Pelo menos no meu caso, acontece isso. Com textos de outro autor em mãos me sinto, enquanto diretor, mais à vontade em experimentar durante o processo de montagem e ensaios com os atores e as outras pessoas da equipe de criação. E um texto de teatro, diferente do romance ou do conto, somente existe em sua plenitude no palco, na voz e no corpo dos atores perante o publico. Mas o contrário também pode acontecer. O resultado pode ser catastrófico quando um diretor não dá conta de se relacionar ou dialogar com a peça. O risco aumenta quando se trata de dramaturgias contemporâneas, que flertam com exploram novas possibilidades formas e experimentações linguísticas. Quando o diretor não é o próprio dramaturgo, exige-se que ele, o diretor, consiga adentrar na mente do autor do texto. Pensar como ele pensa. Respirar como ele respira. Há muitas obras que seguem a pulsão e ritmo respiratório de quem as escreveu.

Para um realizador de teatro — diretor, dramaturgo, ator, etc. — o que de melhor e pior Curitiba oferece?
Curitiba é uma ótima cidade para se viver, oferece boa qualidade de vida a custo razoável. O que estraga Curitiba são duas coisas: o clima e o curitibano. É uma brincadeira, mas não deixa de ter um fundo de verdade. Curitiba é como o castelo da bruxa: tem sempre uma nuvem fechando tudo. E o curitibano é terrível. As relações entre as pessoas são mais difíceis. Curitiba não é uma cidade para amadores, se não tomar cuidado, você acaba se autodestruindo. Curitibano adora falar mal de Curitiba, como em quase toda cidade, mas aqui isso é uma doença. Tanto que é a única cidade que conheço que tem uma rua que se chama “Boca Maldita”. Mas que ninguém de fora pense em falar mal da cidade. Particularmente, tenho em Curitiba e no curitibano, rica e inesgotável fonte de inspiração. Curitiba e o curitibano são matéria-prima riquíssima.

Árvores abatidas parte da obra de Thomas Bernhard. Quais são os outros autores de ficção (excetuando os dramaturgos) que foram importantes para sua formação como leitor? E quais deles tiveram influência em seu trabalho de dramaturgo?
Thomas Bernhard é o autor que mais li e reli ao longo dos anos. Tanto que cheguei a acreditar que eu era o Thomas Bernhard, ou que havia entre nós alguma ligação mística. Só assim se explicaria tamanha afinidade. Assim como já cheguei a acreditar, na adolescência, que eu tinha parentesco com Leminski, tamanha a familiaridade que sentia ao ler sua obra. Tudo o que Leminski escreveu era o que eu gostaria escrever. Era tudo o que eu deveria ter escrito, caso o Leminski já não tivesse escrito. [J.D.] Salinger sempre esteve bastante presente. Dostoiévski também. Aliás, Dostoiévski é autor recorrente. Mas quem teve e tem maior influência, muito mais que qualquer autor ou teórico, continua sendo Curitiba e o curitibano.

Suas peças têm feito bastante sucesso não só na cidade, mas também fora. É mais difícil, porém possível, ser notado mesmo fazendo teatro a partir de Curitiba?
Rio de Janeiro e São Paulo ainda são os principais centros, não só culturais. O que acontece nessas cidades acaba sendo propagado em cadeia nacional, e isso inclui a produção teatral. Mas Curitiba vem conquistando cada vez mais atenção e reconhecimento. É cada vez maior a atenção voltada ao trabalho de alguns artistas da cidade, permitindo que Curitiba viva um grande momento, com representatividade e lugar de destaque, no cenário teatral brasileiro. Concordo com o que disse recentemente uma critica de O Estado de S.Paulo, que “nos próximos anos, prometem soprar de Curitiba os ventos que movimentam o teatro brasileiro”.

Você comandou durante três anos o Núcleo de Dramaturgia do SESI-PR. Há um movimento para a formação de novos dramaturgos na cidade ou apenas iniciativas isoladas?
Durante as décadas de 1980 e 1990, o dramaturgo foi praticamente convidado a se retirar do teatro. Virou uma função quase obsoleta. Atualmente, o papel do dramaturgo passa por uma revalorização. Isso em todo o país. Em Curitiba, era comum ouvir dizer que não existiam novos dramaturgos brasileiros que prestassem. Em contrarresposta, em 2007, começamos a nos organizar em iniciativas que, embora bastante tímidas, foram determinantes para o inicio deste movimento. Em 2007, começamos a realizar, na sala de ensaios da minha companhia, leituras dramáticas da Nova Dramaturgia Curitibana. O resultado foi melhor do que esperávamos. Dessa iniciativa, partiu o convite do SESI-PR para desenvolvimento de projeto em dramaturgia, o que viria a ser o Núcleo de Dramaturgia. Hoje já podemos afirmar que o teatro paranaense e o teatro brasileiro estão muito mais ricos com a nova geração de dramaturgos que aí está. Em Curitiba, é perceptível o crescente número de jovens com interesse em escrever para o teatro. Algo que não existia há cinco anos. E também se percebe a maior atenção e realização de ações por parte de importantes instituições visando formação de novos autores de teatro.

Curitiba tem forte influência da imigração, que está bastante nítida na produção de áreas como fotografia e literatura. O teatro feito em Curitiba também leva esta marca de nossa história?
Sim, mesmo que às vezes a gente não tenha consciência disso tão claramente. Eu só percebi melhor essa marca, e a potencialidade dessa particularidade, ao levar os espetáculos a plateias de outras regiões do país. Em 2010 participamos do “Festival Palco Giratório” [promovido pelo SESC local] com as peças Árvores abatidas ou Para Luís Melo e Psicose 4h48. Nos apresentamos praticamente em todos os Estados do país, com plateias bastante distintas. Após a apresentação sempre rolava um bate-papo com o público. Uma observação recorrente era sobre a estética de nossas encenações. Chamavam atenção a limpeza e economia estéticas, o rigor, a contenção, precisão, melancolia, introspecção, introversão, contemplação. São elementos que tem direta influência do comportamento e temperamento do curitibano. São características também presentes em trabalhos de outras Companhias da cidade, ou na música de grupos como o Wandula, ou mesmo do compositor Marcelo Torrone. Pela música deles, sente-se o ar de Curitiba.

Quais são os realizadores de teatro que souberam dialogar melhor com as contradições e idiossincrasias da cidade?
Recentemente tivemos dois espetáculos de grande repercussão nacional: Vida, da Cia Brasileira de Teatro, e Arvores abatidas ou Para Luis Melo. São espetáculos que não se restringem ao público curitibano, ao mesmo tempo em que, diretamente, dialogam com a cidade. Já sabemos que curitibano é inverso dos clichês da brasilidade, ou seja: é frio, melancólico, fechado, introvertido, quieto, soturno e tem fama de maldito. E não é só isso. É muito mais que isso. E é esse “muito mais” que está hoje, neste momento, sendo descoberto, ou melhor, sendo criado. O curitibano é uma novidade. Há tempos já se canta, se fala, se estuda sobre o baiano, o mineiro, o carioca, o paulista, mas o curitibano ninguém ainda sabe direito o que é. O próprio curitibano está começando a se descobrir, ou em outro modo de pensar, ainda esta sendo inventado. Para qualquer artista isso é um prato cheio. Quando digo artistas, refiro-me a seres inventivos e pensantes, dotados da capacidade da criação e que dialogam com a sensibilidade e o pensamento de sua época. Escritores como Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Cristovão Tezza, além de autores exemplares, são ótimos exemplos da importância do papel do artista na invenção do curitibano. É lendo esses caras que podemos alargar nossa compreensão sobre o que é essa raça de gente de “boca maldita”, essa raça de gente “desgracida”. Mas não só maldita, nem desgracida. Ainda há muito a se pintar, se teorizar, se dizer sobre o que é essa novidade, o curitibano. Só escrevi Árvores abatidas ou Para Luís Melo para tentar entender um pouco melhor o que é o curitibano.