Ensaio | Sérgio Augusto

Sexo, tirania, Orwell e Wilhelm Reich

O escritor Sérgio Augusto analisa 1984 a partir da repressão sexual em Oceânia, o país distópico criado por George Orwell 

O partido único de Oceânia, o país autoritário de 1984, tem três slogans: Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força. O quarto fatalmente seria Amor é Ódio, recíproca consolidada quando seu mofino anti-herói, Winston Smith, finalmente admite estar amando aquele a quem mais odiava, o Grande Irmão. As motivações psicológicas desse ódio transformado em amor podem ser entendidas pelo que Wilhelm Reich escreveu sobre a manipulação da psique coletiva dos alemães pelo nazismo. Como fazer sexo sem empecilhos em Oceânia é quase impossível, a energia acumulada se converte, reichianamente, em histérica adoração do chefe supremo.

Escrito em 1933 mas só publicado em inglês dois anos antes de Orwell iniciar 1984, A psicologia de massas do fascismo jamais passou pelas mãos do escritor. Não encontrei em suas reflexões sobre o totalitarismo nazifascista e a ditadura stalinista qualquer referência às teorias reichianas sobre sexo e poder. Orwell dava pouca importância à libido (a ponto de haver escrito um ensaio em que Henry Miller corre o risco de ser confundido com um congregado mariano), mas não evitou que, em sua distopia, o sexo acabasse sendo o fulcro em torno do qual quase tudo gira. Reich teria deitado e rolado com a repressão sexual vigente em Oceânia.

Se alguém lá fosse surpreendido com uma prostituta, cinco anos de trabalhos forçados. Às ocultas, ainda tinha alguma chance de escapar às punições vigentes, já que as autoridades às vezes faziam vista grossa, pois de certa maneira interessava ao poder incentivar a prostituição como válvula de escape de instintos que não podiam ser totalmente suprimidos. “A luxúria em si”, lê-se num dos primeiros capítulos, “não tinha maior importância, contanto que fosse furtiva e sem alegria, e só envolvesse mulheres de uma classe submissa e desprezada”. O objetivo do Estado era desidratar o amor e retirar do ato sexual todo e qualquer prazer, reduzi-lo a uma operação ligeiramente repugnante, dentro e fora do casamento. A única função do casamento era procriar filhos a serviço do Partido, educados para este fim em instituições públicas. Não estamos muito distantes da metafísica do sexo de ideólogos fascistas como Julius Evola e Giovanni Gentile.

Nenhum moralismo por trás das restrições impostas pelo Grande Irmão. O duce de Oceânia apenas temia que do amor entre as pessoas surgisse uma força incontrolável, capaz de pôr em risco a sua onipotência. Por isso, em Oceânia, o ato sexual, quando exitoso, é considerado subversivo. Amor, portanto, é o maior crime cometido por Winston e Julia. Cabe a ela, aliás, dar a melhor explicação sobre a filosofia da repressão ao sexo em Oceânia: “Quando amas, gastas energia; depois, ficas contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que te sintas assim. Querem que te estoures de energia o tempo todo. Todo esse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de Ódio e todo o resto da maldita burrice?”.

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Os atores Suzanna Hamilton John Hurt e em cena do filme 1984, dirigido por Michael Radford

Outrora fora diferente. Esse reconfortante passado só aparece em sonho, sob a forma de um éden ecológico, a terra dourada onde amor e natureza se encontram e se fundem, clichê de numerosas ficções futuristas. Há uma reserva onde se preserva um mundo verde, de céu azul e pureza infinita nas páginas de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. É além de um Muro Verde, fronteira do horror automatizado com uma floresta onde a liberdade reina absoluta, onde os personagens de Nós, distopia paradigmática do soviético Evgueni Zamiátin, que, aliás, muito influenciou Orwell, localizam o paraíso sobre a Terra. Ao menos na primeira versão comercialmente explorada de Blade Runner, a rota de fuga de Rick Deckard e Rachael terminava numa verdejante e ensolarada paisagem tropical em tudo contrastante com o degradado urbanismo de Los Angeles, onde toda a trama se desenrola.

Todo distopista é um passadista incurável. Seu futuro é sempre uma projeção amplificada do presente que de bom grado trocariam por um passado idealizado, preferencialmente em estilo bucólico. Nenhum passado vale tanto, é verdade, mas dependendo do presente que temos e o futuro com que nos acenam não há limite para a nostalgia. Orwell imaginou o inferno de Oceânia em 1947, mal refeito da guerra, da morte da mulher (em 1945) e da irmã mais velha (em 1946) e às voltas com uma tuberculose que o mataria três anos mais tarde. Não surpreende que ele suspirasse pela democracia capitalista de, digamos, 1912.

Nas distopias, muitas das coisas que um dia foram triviais, rotineiras, adquirem valor desmedido, ou porque as forçaram ao obsoletismo ou as proibiram. Uma cama dupla ainda era corriqueira em 1984, mas no romance de Orwell é algo tão extraordinário e cobiçável quanto um cantil cheio d’água no deserto. A cama dupla que Winston e Julia frequentam, no quarto em cima do antiquário de Charrington, tem o mesmo peso das cores que os amantes de Nós encontram em outro antiquário, refúgio mágico e simbolicamente passadista de um cotidiano sitiado pela vítrea e gélida arquitetura do Estado Um. 

Alguns críticos entendem a razão do saudosismo, mas o consideram basicamente reacionário. Afinal, o que é distopia para uns pode ser utopia para outros. Parte do que Huxley previu, horrorizado, para o brave new world de 2500 (destruição da célula familiar tradicional, inseminação artificial, etc), as feministas, sobretudo as afinadas com o dogmatismo de Shulamith Firestone (A dialética do sexo), na certa aplaudiriam.

As feministas nunca viram 1984 com muita simpatia. As mais ortodoxas por julgarem opressivo o amor romântico exaltado por Orwell. Ninharia. Há pontos menos discutíveis e mais sugestivos na profecia orwelliana à disposição das feministas. As fantasias de estupro (e assassinato) de Winston vis-à-vis Julia e o sectarismo exacerbado das mulheres de Oceânia têm uma explicação reichiana: toda inibição da gratificação genital intensifica o impulso sádico. Quanto maior a repressão sexual, maior a exacerbação. Justamente por ser menos reprimida é que Julia consegue rebelar-se, a seu modo, contra o Partido.

Orwell não explora essa condição privilegiada, preferindo investir mais na ideia de que a ignorância, se não fortalece, como apregoa o Partido, torna menos sofrida — e até mais sadia — a vida dos súditos do Grande Irmão. Julia é uma saudável ignorante, “rebelde só da cintura para baixo”, sem gosto pela leitura, mas pronunciado gosto por cosméticos, meias de seda e sapatos de salto alto. Ora, Julia gosta do que é proibido, atitude política das mais audaciosas em Oceânia. Pior tratamento recebem a primeira mulher de Winston, a vulgar e vazia Katharina, e as matronas embagulhadas por partos sucessivos — felizes da vida, apesar de tudo.

Um contraponto entre as duas, Julia e Katharina, como Zamiátin fez com as duas amantes de Nós, teria enriquecido 1984 sem desviar Orwell de sua preocupação maior, que era valorizar menos a relação macho-fêmea (Winston-Julia) do que a relação pai-filho (O’Brien-Winston). De qualquer modo, foi ao dar em cima de Winston que Julia chamou-o à subversão da ordem, na Terra Dourada e numa velha cama de casal. Em Oceânia, o gozo é uma afirmação de individualidade a dois, uma revolta contra o instinto gregário, o panurgismo cabisbaixo e lobotomizado.


SÉRGIO AUGUSTO é jornalista e escritor. Trabalhou nas redações da revista O Cruzeiro e IstoÉ e nos jornais Folha de S.Paulo e Pasquim. Hoje assina coluna no jornal O Estado de S. Paulo. Autor dos livros Lado B e Este mundo é um pandeiro. O texto publicado pelo Cândido saiu originalmente na Folha, em 1984, e foi revisto pelo autor para esta edição.