Ensaio | Antonio Cescatto

Transparência ofuscante

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O escritor Antonio Cescatto analisa a obra de Karl Ove Knausgard, autor norueguês que escreveu uma série de seis romances autobiográficos e é uma das estrelas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano


Depois de anos de convites aceitos, seguidos de recusas de última hora, o escritor norueguês Karl Ove Knausgard finalmente prepara- se para desembarcar no Brasil. E chega com solenidade, despontando como a grande estrela da 14.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece entre 29 de junho a 3 de julho. Observando o frisson provocado pela vinda do escritor, ou dedicando-se a explorar um pouco da sua história e da sua obra na internet, qualquer um é levado a acreditar que Knausgard é, hoje, um nome reconhecido e consagrado no mundo literário. Nada mais longe da verdade. Knausgard é, de fato, bastante lido, mas está longe de ser uma unanimidade. Ao longo dos últimos anos, não faltaram críticos e escritores do primeiro time para dedicar belas e generosas resenhas à obra de Knausgard, a começar pelo grande James Wood, através do qual o norueguês (assim como a escritora italiana Elaine Ferrante) foi apresentado ao mundo em 2012, em um artigo da revista New Yorker. 

O escritor vinha com a fama de um feito extraordinário: na Noruega, seu país e origem, a saga “Min kamp”, no original, em norueguês (“Minha luta”, no Brasil, “My struggle”, na América e — sim, isso mesmo — “Mein kampf”, em alemão), tornara-se um fenômeno de vendas. Mais de meio milhão de livros vendidos em um país com com cerca de 5 milhões de habitantes. Se considerarmos que “Minha luta” tem, no total, seis volumes, cada um com mais de 500 páginas (perfazendo 3,6 mil páginas no total), podemos ter uma ideia da façanha. 

James Wood explica-nos o motivo: trata-se de uma prosa encantatória, com uma transparência radical e passagens entre sublimes e celestiais. Mais ainda: um texto que, segundo o crítico, mesmo quando o entediava, mantinha- -o interessado. Outro crítico importante, Thomas Meaney, falou do compromisso, do escritor e da obra, em capturar o tedioso, repetitivo e microscópico mood da consciência humana, resultando em algo paradoxalmente absorvente. Zadie Smith, a escritora inglesa, além de dizer que, no livro, a escrita e a vida acontecem simultaneamente, foi mais dramática: declarou que precisava dos livros de Knausgard como quem precisa de crack. 

Lâminas afiadas 
Se tudo isso é verdade, o fato é que, do outro lado, não faltou a lâmina afiada dos detratores. Para o crítico do The Nation, William Deresiewicz, imaginar que o modernismo, cujo clímax dera-se com Joyce, Proust e Virgínia Woolf, teria seu desenvolvimento liderado por um escritor como...(os três pontinhos são dele) ... Knausgard é algo muito deprimente. Apesar de admitir que o norueguês produz algumas boas formulações, o afiado crítico nos brinda com comentários sobre trechos do livro, como: “Se você gosta disso, bom, então esse livro é pra você” . 

Difícil deixar de pensar que “isso” expressa um tipo de sentimento presente, de fato, em alguma parte do mundo literário. Diante da escrita simples e despojada do escritor norueguês, muitos devem sentir como se um ideal literário fosse imperdoavelmente traído. E, a partir disso, defini-los (a obra e o estilo) como descomprometidos de qualquer conteúdo estético, especialmente diante do que produziram os mestres modernistas. Em outras palavras: não seria arte. 

Sem desmerecer a importância das polêmicas, é preciso dizer: trata-se de um exagero. 

É verdade que, no caso de Knausgard, os livros deixam de se utilizar de alguns dos armamentos mais valorizados pela arte literária moderna e contemporânea refiro-me à montagem de palavras, o texto-jorro ou fluxo de consciência, a desconstrução e radicalização da linguagem, a opção pelo coloquial, etc.). 

Mas, ao descartar esses recursos da prosa, Knausgard se apropria, e com desenvoltura, de outros: o texto que, a partir de um acontecimento banal, desenvolve-se em um brilhante ensaio; a utilização dos aforismos ao modo de Adorno, isto é, a partir da colagem com cronologia; a técnica da passagem entre histórias que Flaubert desenvolveu como ninguém em Madame Bovary; e, especialmente, a apropriação de recursos da poesia contemporânea, isto é, o deslocamento de ideias e situações, na eterna batalha entre significar e não-significar, que encontramos, tão claramente, em Wallace Stevens. Mas o que mais diferencia Knausgard dos mestres modernistas talvez seja o fato desse escritor abolir do seu projeto um dos instrumentos mais poderosos já inventados: o distanciamento e o afastamento como tática e estratégia para desestabilizar o olhar. Entre a genial visada fria de Kafka, a paralisia de Beckett, os olhos incendiários de Faulkner, existe sempre uma distância entre o que o escritor vive e o que ele escreve. Essa distância pareceu, na modernidade, condição para a produção literária. 

O projeto de Knausgard 
Com Out Of The World, de 1998, Knausgard estreou na literatura. Time For Everithing, seu segundo livro (uma ficção em que reconta a história dos anjos da Bíblia) foi lançado em 2004. Apenas em 2008, aos 40 anos, Knausgard começa a escrever as 3,6 mil páginas de “Minha luta”. O livro nasce de uma crise. A crise da meia-idade. A crise de um escritor. A crise de homem que se torna pai e vê-se diante de uma travessia. 

Knausgard encontra a saída para essa crise por meio da escrita e de uma postura ética e moral. Como Adorno, a quem dedica páginas e páginas, ele acredita que vivemos o auge da era narcisista,e que, num período assim, um dos mais graves pecados capitais é o que, curiosamente, não está incluído entre os sete  : a indiferença.

Knausgard não é indiferente a nada. Tudo o abala e o comove. À estratégia do distanciamento ele opõe o poder da presença, a presença de um ser humano real, que reage às situações com toda gama de ambiguidades, contradições e dúvidas que definem um ser humano. 

Li apenas dois livros da saga “Minha luta”, o primeiro, A morte do pai, e o segundo, Um outro amor. O primeiro, Knausgard inicia com um longo ensaio sobre a morte (segundo ele, em entrevista ao crítico James Wood, em Oslo, a única parte realmente bem escrita de “Minha luta”), segue com hilariantes descrições dos primeiros porres da juventude e culmina com uma apoteótica história sobre a morte trágica do pai. 

É o livro da redenção e, também, da definição do projeto. Já se tornou clássico o momento em que, olhando-se no espelho, Knausgard faz um grande zoom-out, localizando o escritor no espírito do seu tempo. Da mesma forma que são tocantes as descrições de Vanja, a primeira filha. 

O segundo livro da saga é o meu preferido: ele começa com uma diatribe destemperada contra o excesso de férias escolares (algo incompreensível para um escritor com compromissos literários e sufocado com as práticas do cotidiano). Continua a narrativa descrevendo a viagem com três crianças à casa de um casal de amigos sem filhos, naturalmente um desastre (para o casal de amigos), a partir da qual Knausgard faz uma crítica cruel do egoísmo contemporâneo. Segue, páginas depois, com uma descrição pormenorizada de alguns amigos aqueles que importam, claro) e desemboca, sem que seja possível dizer onde ocorreu a passagem, pela narrativa do grande amor de Knausgard, Linda — uma mulher donosso tempo, dramática, exagerada, neurótica, mas também encantadora, corajosa, brilhante, que o faz tornar-se um sueco, e com a qual vem a ter três filhos. 

Knausgard descreve com brutalismo e lirismo únicos esse amor, da mesma forma com que descreve sua primeira mulher e seu primeiro casamento, uma história que remete ao primeiro matrimônio de Charles Bovary. 

                                                                                Reprodução
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O norueguês Karl Ove Knausgard publicou dois livros de ficção que não tiveram
êxito antes de iniciar o projeto de“Minha luta”, série deseis romances
autobiográficos que o transformou em um fenômeno  literário mundial.


Luta e glória 
Não é preciso dizer que Knausgard pagou caro pela ousadia. Além de um processo movido pela ex-mulher, foi acionado juridicamente por familiares e amigos que se sentiram ofendidos pela forma com que foram retratados, já que o escritor recusou-se, também, ao conforto do roman à clef, preferindo chamar os personagens pelos seus nomes verdadeiros. Mas esse é o preço que Knausgard e sua obra teriam de pagar pela ousadia. Não havia como ser diferente.

“Minha luta”, afinal, é a saga de um homem que se pretende escritor, e não abre mão desse desejo. Que convive, enfrenta, se choca, se agarra e sobrevive, produzindo e criando sua obra em meio a crises, choros, jardins de infância, humores variáveis e caminhos sem saída, guiado apenas pelo ato de escrever e por uma determinação Viking. Não é possível estabelecer um percurso como esse sem algumas virtudes básicas, como a franqueza e a coragem. 

Além disso, quando se pensa em “Minha luta”, não se pode esquecer que Knausgard é da Noruega, país que realizou, como nenhum outro (graças, em particular, ao petróleo, descoberto em 1969, um ano depois do nascimento de Knausgard), o famoso e tão falado “estado de bem estar social”. Ao contrário do que se pensa, esse modelo de plenitude social coloca homens e mulheres diante de novos e dilacerantes dilemas. O que significa ser homem ou mulher em uma sociedade em que não há mais
espaço para o senhor-proprietário? O que significa o amor em uma sociedade em que o fim da divisão burocrática de papéis, somada ao fim concreto do trabalho escravo, torna a tarefa de criar filhos
sustentar a família um ato hercúleo, a dois, apenas? 

O que resulta disso, quando esse homem é um escritor — e esse escritor é Knausgard — é uma luta, um espaço em que viver, lembrar e refletir só pode existir enquanto se vive. 

Pensar em Proust é, nesse sentido, muito relevante. De 1909 até o fim da sua vida, em 1922, Proust se retirou do mundo, exilando-se em seu apartamento em Paris para escrever. Em busca do tempo perdido nasce dessa solidão extrema. Uma Madeleine dispara a engrenagem da memória. Percorremos os caminhos de Swan, as cercanias de Guermantes, acompanhamos Albertine e personagens que existem apenas no passado e na memória ativa do escritor. Deslumbrante no afresco que desenha diante dos nossos olhos, Proust é, também, o homem e o escritor de um momento do século XX. 

Knausgard pertence a um outro tempo. Ele rejeita o afastamento, a indiferença e qualquer artefato que possa encerrá-lo na linguagem e afastá-lo da vida cotidiana, aquela que sempre assombrou, paralisou e gerou delírios kafkianos entre os escritores. 

Nada deixa isso mais claro do que o modo como seu romance foi escrito (processo descrito em minúcias no livro): Knausgard iniciou-o em casa. Mais tarde, decidiu alugar uma sala no centro da capital da Suécia. Sua rotina era clara. Depois de cuidar da casa, deixava a filha, a espirituosa Vanja, na escola, e dirigia-se ao escritório, onde escrevia diligentemente, de 15 a 30 páginas por dia. Três filhos depois, a rotina se repetindo todos os dias, chegou-se aespantoso resultado final. 

A magia de “Minha luta”
Nosso crítico do Nation detestaria a comparação com Ulysses, para ele, impossível. Mas não há como resistir. Diferentemente da obra-prima de Joyce, estruturada em torno de um dia em Dublin, “Minha luta” estrutura- se sobre a vida de um escritor que escreve sobre a vida desse mesmo escritor, e que não necessita mais do que as palavras simples e a inefável substância poética para torná-la vívida diante dos leitores. 

Essa é a magia de “Minha luta” e de Knausgard. Criar um universo de transparência única, através do qual reaprendemos a olhar. E reaprendemos ao descobrir que, paradoxalmente, a transparência pode distorcer nossa visão, criando um ofuscamento. Além ou aquém dela, a vida vibra, no mesmo diapasão que a morte. E os limites entre ambos estão sempre sendo tensionados, entre o significado e o não significado, entre a dor e a alegria, entre ser e desaparecer.

Mas também pode ser outra coisa 
Entre as muitas histórias que poderiam ser citadas para terminar este texto, escolhi uma que é repetida por muitos críticos. É um fragmento do terceiro livro, onde Knausgard, ao olhar os três filhos brincando, lembra da tremenda frustração que foi para ele quando, ao oferecer flores para o seu pai, foi bruscamente rejeitado. Aquilo, disse- -lhe o pai — um muro de rigor — era um gesto de menina. 

Ao olhar para os três filhos brincando, Knausgard escreve que só tem um desejo: que um dia, ao chegar aos 40 anos, nenhum deles tenha medo do seu pai. E que este, diante das flores oferecidas, seja capaz de abaixar-se para receber o buquê. 

Apenas por isso, Knausgard já mereceria uma salva de palmas. Ou uma chuva de flores. 

Antonio Cescatto é escritor. Autor do romance O mundo não é redondo (2010), também publicou as novelas Preponderância do pequeno (2011) e Cloaca (2012). Nasceu e vive em Curitiba (PR).