Ensaio

Onde está a literatura homoerótica brasileira?

O escritor Paulo Venturelli faz uma explanação a respeito de obras e autores que se enquadram no conceito de literatura homoerótica, um nicho que segundo o crítico ainda merece maior atenção da academia e da crítica literária



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Uma história de amor pode ser um fato banal. Duas ou mais histórias de amor amplificam o lugar- -comum, o previsível, coroando as andanças do coração e da mente a circularem por caminhos que a literatura não se cansa de trilhar. Que outra coisa tem ocupado os escritores se não fabular sobre o amor e, por trás dele, flagrar pensamentos em riste, a matéria veemente e com tantas contradições de todas as linhagens sociais?
Quando, porém, essas histórias acontecem entre homens e rapazes, alguma tonalidade nova pode surgir na recorrente e esgarçada imagem do amor humano. É que entram em cena os tabus, os preconceitos e interditos, os fetiches criados num universo que até agora vem insistindo em ser organizado segundo os princípios e as necessidades que privilegiam as relações entre homens e mulheres. Ao depararmo-nos com fatos, pelo que tudo indica, também bastante vivenciados, como são as tramas afetivo-sexuais envolvendo dois homens, estaremos lidando mais que nunca com as máscaras que a sociedade foi tecendo para encobrir tudo o que traz incômodos. As máscaras sociais brotam daquelas fissuras produzidas nos esquemas de comportamento. Logo, são ideológicas e balançam quando se trata de considerar e definir ou não uma modalidade de amor nem sempre prevista. Se não balançam, ao menos olham de esguelha o desfilar ao nosso redor e dentro de nós de uma carga afetiva não canonizada pelos discursos que nos moldam por meio da ação de pontos de vista que fazem de nós os seres que somos.

Nestes casos, o tratamento mais encontrável deságua na caricatura, cuja retórica estilizada produz uma arena de auto-devoração em que nossas sombras e nossos perfis difusos são depositários dos medos acumulados. E ali, sob o foco do riso de escárnio, tenta-se ritualizar uma dança com objetivo claro: exorcizar os demônios camuflados naquilo que abre uma brecha no muro das convenções que todos pretendem sólido e imutável.

Por esta via, ao estarmos frente a frente com um romance explícito entre dois “iguais”, isto é, entre duas criaturas com características genitais idênticas, entramos no centro vivo do social. E é este centro o lugar dos mais diversos discursos. Esses tramam a contraditória palpitação da sociedade que, exultando ou envergonhando-se, tenta extirpar de si tudo o que ofende a aparência da forma de ser que é apresentada como oficial. E em tudo que é oficial revela-se a coercitiva teatralização da verdade.
Dois homens, dois rapazes, cujos caminhos se encontram e aceitam o desafio de um amor anti-convenção, estão, de fato, envolvidos com as questões mais intricadas da ideologia. O assentimento de “‘ser’ homossexual ou pensar sobre o assunto” está subscrito numa “nomenclatura e, consequentemente”, num discurso (Denise Portinari). Este é, em decorrência, a verdadeira e escorregadia personagem dessas histórias.

Como é do conhecimento de todos, nenhuma obra literária pode ser criada num vazio edênico. Cada romance, tendo a tônica que tem, se liga à tradição. Assim, estamos com as mãos enterradas em característica massa de linguagem (a homossexual). E o que nos contam narrativas com este enfoque são contundências sobre os valores-base que nos enformam, informam e, tantas vezes, deformam. Por isso, “por mais desviante que a homossexualidade possa parecer em relação a determinadas normas, ela não escapa a essa instância reguladora que é a linguagem; por mais ‘fora-da-lei’ que a suponhamos, ela não está fora das leis que regem a significação — logo, regem os sujeitos, os desejos e as condutas” (Denise Portinari).

Como se vê, estamos lidando apenas com a homossexualidade masculina, porque este é nosso campo de pesquisa, e com a narrativa, deixando de lado a poesia por uma questão de espaço.

E neste panorama, ao darmos uma visada ampla na literatura brasileira que trata da temática homoerótica e desta forma de ser/amar, diacronicamente nossos olhos pousam sobre O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, em que o internato, um lugar fechado, permite a manifestação de amizades e protecionismos com a efervescência de uma aura que podemos rotular de homoerótica.

“Em termos de linguagens, o homoerotismo se manifestaria numa poética do olhar, na insinuação de formas, na dança dos gestos e na possibilidade do encontro. O complicado é traduzir esses códigos para a literatura, é expressar o desejo por meio de palavras” (Gilmar de Carvalho). E a obra que no século XIX aborda estas questões de forma ousada e precursora é Bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, um romance tão adunco que a tradição crítica o desprezou, vendo nele apenas páginas de forte naturalismo quando, em verdade, o autor, escrevendo sobre a paixão de um escravo fugido por um adolescente, estava antecipando o estudo de gênero, vertente que se abriga dentro dos estudos culturais.

Em 1906, Machado de Assis publica Relíquias da casa velha e ali se encontra o conto “Pílades e Orestes”, história de dois senhores que vivem juntos e se tratam amorosamente, podendo tal conto ser enquadrado dentro do que hoje entendemos como homoerotismo.

Depois disto, temos uma produção esparsa. Avulta a figura de João do Rio que, na belle époque brasileira, assumiu sua condição de homossexual e escreveu alguns contos em que o tema, ligado à sua vivência, é explicitado ou insinuado.

Mário de Andrade, com “Frederico Paciência”, dá umas pinceladas cuidadosas no tema, como se temesse escancará- lo, numa época de muito preconceito.
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Com o “O iniciado do vento”, Aníbal Machado nos apresenta um engenheiro cansado da vida na cidade, que viaja para o interior e acaba se envolvendo com um pré-adolescente, o Zeca da Curva, de rústica beleza, e tudo descamba para acusações de pedofilia com o desaparecimento do menino.

Jorge Amado, em 1937, publica Capitães de areia — meninos de rua envolvidos sentimental e sexualmente como uma forma de combater o abandono em que viviam e como um modo de encontrar um mínimo arrimo existencial.

Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, um escritor católico e atormentado pela culpa, em 1959 traz a público esta que é uma obra-prima de nossa literatura, um romance contado sob diversos pontos de vista. Nele, um dos centros é Timóteo, personagem nada convencional, que se tranca num quarto, travestido com roupas e joias da mãe, pretendendo com isso desmascarar a decadência da família Meneses.

Neste esquema rápido, não podemos esquecer Grande sertão: veredas, de 1956. Guimarães Rosa quer que o leitor faça a mesma travessia de Riobaldo que se apaixona pelo jovem jagunço de olhos verdes, Diadorim. Sendo que a real identidade deste se revela só no final, durante todo o percurso romanesco temos/vivemos o amor entre dois guerreiros do sertão mítico.

1965 é o ano em que Gasparino Damata apresenta-nos a antologia Histórias do amor maldito, reunindo vários autores que se debruçaram sobre “o amor que não ousa dizer seu nome”.

Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, em contos diversos, Antônio Callado (Concerto carioca) e João Ubaldo Ribeiro (O sorriso do lagarto) têm pontualmente personagens com esta orientação sexual. A literatura que se pode denominar de homoerótica passa a ter uma relevância maior a partir dos anos 1970, quando os homossexuais organizaram-se para lutar por direitos e cidadania impulsionados pelos acontecimentos de Stonewall, marco inicial das reivindicações mais expressivas e da luta mais aguerrida.

Lampião da esquina
, um tabloide mensal, surge em 1978, editado por Aguinaldo Silva como um jornal que dava voz e expressão à “minoria” sexual. Impulsionado por ele, houve a publicação de várias obras menores, de teor confessional e baixa qualidade literária, aproveitando a visibilidade que os homossexuais começaram a ter. São obras dentro da indústria cultural que visavam à venda fácil e o lucro imediato, dentro de um público agora mais vasto.

Vale a pena ressaltar o nome de João Silvério Trevisan, que ao longo de sua carreira tem trabalhado sistematicamente com esta temática e podemos destacar Em nome do desejo (1983), foco  de meu estudo no  Mestrado.

Aguinaldo Silva, antes de optar pela telenovela, foi um autor marcante dentro deste ângulo de produção, com Primeira carta aos andróginos (1975) e Lábios que beijei (1992), entre outros.

Sem dúvida, a figura mais emblemática de nossa literatura homoerótica é Caio Fernando Abreu, o eterno adolescente em crise existencial e em busca de identidade. Seus contos e romances seguem esta linha. Em Morangos mofados (1982), Caio gira em torno de si próprio e do seu discurso desencantado. Em Triângulo das águas (1983) temos pelo menos a história de um desencontro amoroso entre Pérsio e Santiago.

Talvez a produção mais contundente, incisiva, original é a que sai das mãos de João Gilberto Noll. Não só pelo teor que é nosso tema, mas como literatura de alto coturno, em que ele questiona os próprios limites do romance, com uma escrita minimalista, com personagens deslocando-se pelo vasto mundo, sem Norte e sem Sul, em que o corpo muitas vezes é uma chaga viva e os encontros são fortuitos e dolorosos. Bandoleiros (1985), com sua forte pulsão cinematográfica e certa iconografia do western, Rastros de verão (1986), um travelling sobre o absurdo do mundo, e Hotel Atlântico (1989), com seu personagem desnorteado e sem destino, são obras que merecem ser lidas e relidas.

jukebox
Silviano Santiago, crítico e acadêmico de ponta, tem pelo menos em Stella Manhattan (1985), tema de meu Doutorado junto com Bom crioulo, um livro centrado num jovem homossexual incompreendido pela família que foge para os EUA em busca de espaço existencial e se envolve com personagens ligados à resistência à ditadura militar que é satirizada.

Um autor que não tem merecido muito destaque, talvez pelo tabu que ainda cerca esta temática, é Márcio El- -Jaick. Seu último romance, Para sua jukebox, emula o discurso de um adolescente de 17 anos, com todas as suas gírias e falas tautológicas, conseguindo uma estética literária primorosa que fascina porque nos faz entrar em cheio no universo deste garoto que vive um caso com um dentista casado.

Enfim, ainda que de modo rápido, deixando muitas obras à margem, podemos constatar que a nossa literatura homoerótica já faz história, tem consistência e está por merecer maior atenção, seja em estudos da academia que, encerrada em seus muros canônicos, só estuda autores do passado que não causam nenhuma fissura nos paradigmas estabelecidos, seja pela imprensa, que precisa renovar seus olhares para aquilo que de vivo vem sendo escrito em nosso país. Nessas obras está pulsando uma parte da população que, de um modo geral, se quer oculta.