Em busca de Curitiba | Mariana Sanchez

Carniceiro

marilia costa

Olhar fixo, saliva farta, garfos a postos. Era assim que Otávio seguia os gestos lentos do garçom de gravatinha, que escorregava uma fatia finíssima de picanha muito vermelha para dentro do seu prato. Eram onze e quarenta de uma manhã quente em Curitiba. Nas mesas ao lado, ninguém, ruído algum além de um televisor sintonizado nas notícias do dia — um latrocínio no Bom Retiro, um engavetamento na Visconde de Guarapuava, duas explosões em caixas eletrônicos do HSBC.

Otávio quis chegar bem cedo para inaugurar o espeto da casa. Chuleta, cupim, linguicinha, picanha. Mal passadas, o boi gritando da cozinha. Acompanhamento nenhum. Era carne e só. Otávio comia sem pressa, às vezes espiava a TV enquanto aguardava mais um pedaço generoso deslizar para o fundo do prato, sem tirar a atenção da maminha na mostarda, da costela borboleta e do filé argentino. Afinal, aquelas garfadas eram as últimas. Seus molares não mais seriam convocados a triturar nervos e dilacerar carnes fibrosas. Aquele almoço era sua despedida do carnivorismo, prática que desempenhou com excelência e dedicação salutar ao longo de quase 40 anos.

A filha, a mãe, a esposa, o cardiologista e até o professor de ioga trataram de convencer Otávio que o coração, as artérias, a obesidade... Você sabe. Ele sabia, é claro. E agora estava disposto a abrir mão de tudo por um maço de rúculas, um rabanete fatiado tão fino quanto aquela picanha.

Duas e meia da tarde. Otávio escreve no ar e o garçom de gravatinha vem ligeiro trazer a conta, acompanhada de uma bala de menta que ele deixa no prato — nunca foi lá muito fã de açúcar. Dá cárie, ele pensa.
Enquanto dirige, passa a língua entre o segundo e o terceiro molar superior direito. Alguma coisa ficou ali no meio, não tem jeito de sair. Esperando o semáforo esverdear, cavouca com a unha, tentando divisar algo pelo espelho retrovisor. Daria a vida por quarenta centímetros de fio dental.

Em casa, vai direto à gaveta do banheiro e fica ali em frente ao espelho uns bons vinte minutos, caçando fiapos de costela e fragmentos de picanha incrustados no espaço interproximal de dois molares. Depois, aquela escovada e um longo bochecho com flúor sabor fresh. 32 dentes livres de cárie e de carne. A essa altura, maminha, chuleta e filé argentino já estão bem longe dali, no estômago, recebendo jatos de suco gástrico potentes o suficiente para destruir tudo aquilo que seus dentes não conseguiram triturar. Tempo estimado para a digestão: seis horas e meia.

Quando o último resquício de picanha desce pela descarga, Otávio já conhece na intimidade os benefícios do espinafre e do broto de bambu. No almoço, agora é arroz, feijão — sem paio nem costelinha —, batata, omelete e verduras em abundância. Para incentivar o ex-carnívoro, a esposa e a filha também aderem à dieta verde. Só a empregada que, vez por outra, ainda frita uns bifes na cozinha, castigando o infeliz com o perfume da gordura que sobe pela coifa.

O professor de ioga era todo elogios, chegando a ensinar uma nova série de asanas para ilustrar temas como flexibilidade, postura e respiração. Orgulhoso, o cardiologista comparou o nível de colesterol dos exames anteriores com o mais atual. A saúde de Otávio estava mesmo impecável. Só uma coisa o incomodava: seus dentes.

O ritual escovação-fio-dental-bochecho não era mais suficiente para dar conta dos resíduos, que pareciam brotar dos molares feito raízes crescendo para os lados. Às vezes, Otávio levantava no meio da noite para passar o fio novamente. Uma, duas vezes. De manhã, os restos alimentares continuavam lá. E eram tão polpudos que, se os mastigasse, sentiria o gosto de uma picanha bem temperada com alho e sal grosso. Mas não: Otávio agora era vegetariano. O jeito era cuspir na pia tudo o que o fino barbante mentolado lhe trazia das profundezas de sua boca.

Para um corretor imobiliário bem sucedido, ocultar os dentes não é tarefa das mais fáceis. Otávio fez de tudo para contornar o que seu chefe classificou como mau humor peremptório, mas o golpe foi fatal. O baixo índice de sorrisos apresentado no último mês lhe rendeu uma inesperada demissão por justa causa. Agora desempregado, Otávio passava os dias palitando os dentes, futucando a gengiva, laçando sua presa com uma já desgastada cordinha dental. A halitose prolongada afastou também a esposa que, achando aquilo demasiado repugnante, declarou que era o fim. Mas aquele era só o começo.

Quando a placa bacteriana converteu a dentição de Otávio em uma superfície escorregadia de puro limo e uma severa retração gengival evoluiu para periodontite, só lhe restou marcar uma consulta com urgência pelo plano de saúde.

Mas em trinta anos de odontologia, o dentista garantiu nunca ter visto nada parecido. Intrigado, não sossegou sem antes enfiar um instrumento pontudo entre o canino e o incisivo inferior esquerdo do paciente, tirando dali um cordel de carne com inacreditáveis dez centímetros de comprimento. Otávio nunca entendeu se o grito proferido pelo doutor era de asco ou de júbilo.

Ficou combinado que se encontrariam semanalmente, naquele mesmo horário. A cada consulta, cerca de vinte e cinco gramas de carne eram retirados da cavidade bucal de Otávio, deixando escorrer um fio de sangue tão vermelho quanto um filé mal passado. Mas a limpeza durava cada vez menos. Nem bem deixava o consultório, a língua já sentia os fiapos despontando na mandíbula.

Com tanta carne ocupando sua boca, Otávio admitiu que o vegetarianismo não era mais necessário e ordenou à empregada que fritasse um bom bife acebolado. Com a gengiva palpitando de dor, porém, mal pôde dar cabo das cebolas. Passou dias à base de sopas, caldos e cremes. E nem por isso os fiapos carnosos lhe deram trégua.

Certa noite, ao despertar de um sonho agitado, Otávio correu até o espelho do banheiro e notou que o esmalte dos dentes tinha perdido o brilho. A gengiva, em carne viva, agora lembrava uma bisteca suculenta. Tentáculos finos e fibrosos se enroscavam, como que enredando molares, caninos e incisivos em um mesmo nó.

Primeiro, investiu contra a arcada inferior, penetrando tão profundamente que só se deteve ao atingir a raiz. Alucinado, partiu para a maxila e foi abrindo caminho no nervo, dilacerando polpa, cemento e ossos não mais com o fio dental cortante e mentolado, mas com o faqueiro de prata que foi presente de casamento. Pouco antes de desfalecer, Otávio logrou arrancar um a um os 32 dentes, gritando e perdendo muito sangue, feito gado no matadouro.


Mariana Sanchez é jornalista com especialização em tradução literária pela Universidade Gama Filho e em cinema pela Faculdade de Artes do Paraná. Idealizadora do programa de rádio Orelha do Livro, nasceu e vive em Curitiba.

Ilustrações Marília Costa