Em busca de Curitiba | João Lucas Dusi
Infante tropeça e finge correr
Caminhando a esmo pelo centro da capital que lhe inspira agonia, Infante se autodeclarou liquidado — e nem tanto pelas circunstâncias insólitas do país falido, mas por ter se tornado um especialista em autocomiseração. Quer dizer, o que ia tão mal, afinal? Tinha seu emprego, ou seja, era honrado, com carteira assinada, gordo salário mínimo, meio sábado livre e um domingo inteiro para desfrutar sua existência. Reclamar do quê? A única explicação plausível, então, é que ele não aprendeu a lidar com as guinadas — aceitáveis — de uma vida mediana, num país eternamente emergente. E agora, por ter sonhado alto tão cedo, se automedicado com doses cavalares de literatura no auge da inocência, sem nenhuma habilidade para sopesar as possibilidades reais, só restava lidar com a rotina desprezível que lhe oferecia desilusão e crescente angústia.
A caminhada estacou num sinal vermelho. A avenida é dupla, um dos lados exclusivo para o transporte coletivo modelo desfilar pela cidade modelo carregando confortavelmente seus habitantes modelos. Para clarear as ideias, acendeu um cigarro. Uma pena que o tempo não contribuía com o estado de espírito do nosso herói: fazia sol, nada de céu nublado e vento cortante para dar um toque melancólico à narrativa. Terror real é que o barato relógio de pulso informava que faltavam apenas cinco minutos para o reinício do expediente. Diariamente, Infante servia mesas num requintado bistrô de Curitiba, ponto de encontro de empresários bem alimentados e despreocupados — os porcos gordos —, além de intelectuais polidos de fala mansa. Não gostava nem desgostava, isso é verdade, resignadamente aceitava que era necessário suportar esse presente medíocre para futuramente desfrutar a glória reservado ao esforçado. Com orgulho, bateria no peito e falaria de suas conquistas, seja lá que inutilidade tiver conquistado — feito uma comum cena curitibana, em que um velho no ônibus, após uma batalha para conseguir o assento preferencial, começa a conversar com o benfeitor que cedeu o trono, expressando aos berros seus méritos e mazelas. Mentira, enfim. Odiava o trabalho, o coitado do Infante. Jamais deixou de escrever, pelo menos. Eis o sonho — sonho de existir no papel, sustentado pelo onirismo literário, coexistindo com o possível e o impossível, sem barreiras, bem longe do lamentável eu-mundano que está sempre sujeito às incontroláveis variações vazias da vida em sociedade. De tudo isso, exclamaria o esperançoso: um dia vai dar certo! E com essa ideia fixa, ao comprar o peixe da traiçoeira esperança, decidiu por bem não voltar ao trabalho naquele dia. Começou mal: as imagens poéticas não soavam bem. Comprar peixe da esperança? Dobrou à direita, seguiu pela avenida e parou em frente à Rua 24h — uma galeria extensa, construída em estrutura metálica tubular em forma de arcos, com cobertura de vidro e dois grandes relógios que não funcionam em cada entrada. Bela merda. O importante, pensou, é que logo ali, já do outro lado da rua, ficam os indigentes, os drogados. É cômico. Esse buraco, o centro, oferece muitas visões engraçadas: as praças teoricamente pacatas, verdes, fazendo jus à imagem de cidade sustentável, abrigam toda sorte de sujeitos mal-intencionados; o calçadão da Rua XV, palco tanto de brilhantes artistas independentes quanto de esquizofrênicos à deriva e colegiais histéricos; a histórica Boca Maldita, casa dos que hoje são considerados, em sua maioria, conservadores de ponta, arcaicos caquéticos e assim por diante. Mas como pensar sobre o todo resulta em nada, jogou a guimba no chão, pisoteou-a e sentou num dos bancos, sob a incômoda cobertura de vidro que permitia ao forte sol torturar seus já judiados neurônios, pensando estar finalmente pronto para pesar com precisão suas possibilidades de ser. Fechou os olhos.
A longo prazo, tudo é tédio. E tédio é insatisfação. Lamentável é não ter considerado que me cansaria tão cedo. Estou entediado. Mais do mesmo, sempre. Queria ao menos ter o prazer de lutar por uma bandeira, fazer parte de um pequeno exército que conquistou seu espaço ou coisa que o valha. Não consigo me importar. Que a vida de nada vale descobrimos com a mesma velocidade com a qual abrimos uma cerveja, mas o problema está em abraçar isso. Acho que foi o que fiz. Já tive meu grande amor, acho. Meu círculo social é mínimo e insatisfatório. As três vezes que vomitei sangue me dizem que já bebi além da conta. Meu moquifo patético de dois cômodos me dá náuseas. Tusso demais todos os dias. Minha vista é ruim. Fui uma criança muito doente. Ainda na barriga, o cordão umbilical tinha dado três voltas em meu pescoço. Perdi contato com os familiares e nem tenho vontade de recobrar. Sei que estar aqui é um erro, mas em delírios zen gosto de me imaginar sozinho, sóbrio e satisfeito. Falho. Falhar é regra. Beckett ensinou, Brecht ensinou. Difícil é aprender. Falhar melhor, seguir falhando, a próxima falha, etc. E nada diz respeito à cartilha social, nada é sobre seguir as regras impostas ou velar pelos costumes vigentes, mas ao quão insatisfeito estou — quer dizer, por bem, faça o que te cabe. Nada mais me cabe. E não há escapatória, infelizmente. Não que eu tenha experimentado muitas das variedades do mundo, como viagens ou expansões do gênero, mas já me sinto acabado. Não há fagulha. Percebo que são momentos e nada mais. Só ameaças. Parece meio impossível, hoje, aceitar essa condição. Me sinto profundamente estúpido ao pensar que isso vale pra qualquer um. Talvez seja a intensidade. Se não consigo aceitar tamanha mediocridade, é por ser muito intenso, muito fraco ou muito burro? A última opção é a correta, claro, mas qual o mérito de suportar uma existência sem sentido, com todas as suas conquistas e prazeres que nada significam? Sei, também, que me elevo na pena de mim mesmo, não mais na pena da escrita — esse tempo já passou, merda! Tudo não passa de masturbação — mental, manual. Eu é que não vou sair por aí poluindo inocentes folhas brancas com esse tipo de lixo. O que resta é aguentar. Aguentar e alimentar uma esperança infundada de que um dia me sentirei satisfeito ante o absurdo de ser, estar, querer sem motivo. Além da exaustão, nada mais me vem à mente. A culpa é minha, sei. Estou sozinho. Estamos sozinhos nessa. Cada ser é uma ilha, óbvio, e cada qual, óbvio, com seus problemas e soluções. O que não vale é a moral falha que rege esse todo, porque se eu for seguir o monte de baboseira que me foi proposta pra acabar aí, aí nesse buraco, eu quero mais é distância. Quero mais é continuar atolado nessa areia movediça, pois quando sair será para revolucionar. Quero e não consigo, então estupidamente sofro. Ou melhor: sofria. A partir de hoje, será assim: falhar melhor, cada vez melhor, até a última falhada. Perfeito. Nem um pingo de originalidade. Perfeito. Vou arriscar ver o lado bom das coisas. Os novos ônibus da cidade, por exemplo, com cinco portas e de um azul resplandecente — tão bonitos! Acho que não custa nada experimentar o impacto.
João Lucas Dusi é escritor. Seus contos foram publicados nas antologias Livro dos novos 2 (2014) e Flupp Brasil — Novos autores (2014). Vive em Curitiba (PR).