Em busca de Curitiba: Apocalipse

Quantos ratos moram na Praça Santos Andrade? Perguntou-se o insone Diogo Boss, numa daquelas madrugadas em que ficava olhando a praça pela janela de seu apartamento. Quantos? Talvez fosse mais fácil enumerar as estrelas no céu do que os roedores que entravam e saiam livremente dos esgotos e passeavam pelo gramado. E quantos mendigos? E quantas pombas? E quantas prostitutas? E quantos donos de cachorros com seus cachorros? Um sujeito,
apocalipse ilustra
solitário e simples, passeia com seu poodle. Diogo Boss sentiu um profundo tédio por aquele desgraçado e seu animal. O que fazia um ser qualquer, sair para a praça, às quatro horas da madrugada com seu poodle, caminhando meio zumbi, meio bêbado, meio sem rumo, entre alguns mendigos que dormiam no gramado em cima de papelões como se nenhum estrago lhes provocasse nas costelas. Tédio mortal. E os ratos? Sinto muito, mas com os ratos é diferente! Que corajosos são eles quando desce o sereno e não se importam mais com os humanos. Não, não venham dizer que a única coisa que diferencia um rato esquivando- se pelo meio fio e um sujeito passeando com seu cão àquela hora, é a condição racional ou irracional. As coisas se misturam. Diogo Boss chegava a enxergar um rabo comprido e liso no sujeito que agora, sentado num banco deixava o cão livre da coleira. Tédio e insônia. Por que estamos acordados se até os mendigos dormem? Para o cachorro pouco importa a hora, a festa de cheirar cada pedaço de grama é a felicidade total. Diogo Boss vê e pensa. Sente uma vontade enorme de alterar a lógica da praça naquela madrugada. Por que as coisas têm que ser tão óbvias e previsíveis? Por que o Teatro Guaíra não é, de repente, um tenor gigantesco acordando fantasmas sonolentos com seu potente fôlego de “Nessun Dorma”? E por que a estátua da Lala Schneider não grita a plenos pulmões: “Essa Curitiba eu viajo!”, revivendo as glórias cênicas e a literatura do vampiro? Aliás, onde andará o vampiro? Com certeza dormindo, roncando, calmo e plácido, sonhando com contos cada vez mais curtos e essenciais. Que silêncio! Nada. Nenhum tarado masturbando-se entre as árvores, nenhuma bailarina deslizando como pluma ao som de “olha, será que ela é moça, será que ela é pura, será que é o contrário?” Ninguém vomitando, bêbado. Nenhuma briga de casal, nenhum travesti tresloucado e triste. Nada. A Praça Santos Andrade, naquela madrugada, não é do povo. Nem da arte, nem do amor, nem dos que dormem e sonham. Ah, se existisse Deus!, pensa Diogo Boss. E completa: E o Diabo? Não. E se Lúcifer fizesse chover?, fala alto porque sabe que ninguém ouve. Não água, mas vinagre? Álcool, azeite quente, ácido sulfúrico? Para onde iriam os mendigos? O dono e seu cachorro voltariam correndo para seu apartamento sem alma? E os ratos? Por um instante, Diogo Boss e seu demônio da perversidade imaginaram o apocalipse de uma trovoada e uma chuva letal e imediata, daquelas que não dão tempo pra nada. Imaginou o cachorro correndo e seu dono tentando alcançá-lo com a coleira na mão, enquanto os mendigos se atirariam para baixo das marquises, sujos, molhados, fedorentos, mais até que os ratos, que se enfiam entre os buracos da praça, sorridentes e sádicos, esperando que tudo seja só deles. Mas nem chove, nem coisa alguma acontece. Melhor assim. É claro que esse enganador sentimento de paz, conforta. Mas quem pode ter paz entre ratos, mendigos, donos de cachorros e cachorros? Uma brisa pouco mais que leve balança os galhos das árvores. Diogo Boss passeia os olhos pela praça, inútil. E vê algo que nunca tinha visto, pelo menos com os diálogos. Num outro banco, sob uma árvore belíssima, de folhas redondas e verdes claras, uma prostituta bem mais feia que qualquer um dos ratos, está com a mão sobre o joelho de um velho, mais feio que tudo — os ratos, os mendigos e, até, a prostituta. Um velho caquético, encarquilhado, desgrenhado, decadente de dar pena. E ela grita ao seu ouvido. O vácuo da madrugada dá a impressão de que ela fala em um megafone, tudo congela e ninguém, nem o cachorro, movem um músculo sequer: “Eu não quero joias, eu não quero roupas, eu não quero sapatos! Eu quero dinheiro!” Diogo Boss riu, porque se achava inteligente e foi até sua carteira na estante da sala, conferir quanto tinha lá dentro. Trinta e cinco reais e mais algumas moedas atiradas. O que faria com a prostituta com aquela quantia? Pobre prostituta, pobre velho, pobre madrugada. Quantos ratos dormem na Praça Santos Andrade agora que já são quatro e vinte? Incontáveis. Enche uma taça de conhaque, mesmo que esteja calor, e volta para a janela. Ainda a tempo de testemunhar a prostituta acertando um sonoro bofetão no velho, que nem reage. Aliás, nada na Praça Santos Andrade reage. Absolutamente nada. É tudo pura passividade. A prostituta levanta irritada do banco e atravessa o canteiro, cruza com o poodle e, sem piedade, ressentida, chuta seu estômago. Um uivo de dor acorda o dono, que caíra num cochilo de desassossego. Estava sonhando com um mundo onde todo mundo era cachorro e ele era o mais cachorro de todos! A raiva pela maldade sobe para seus olhos e ele, de um salto, projeta-se para a prostituta e acerta-lhe um soco impiedoso no canto da boca. Houve também um palavrão, imperceptível, mas sonoro e forte. Ela cai, tonta, nada sensual e de pernas finas, muito finas, desejáveis coisa nenhuma. Mendigos acordam de um susto e, como heróis desavisados, sem motivo aparente — mas eles sabem por que — avançam para cima do homem que sobe no banco. Dizem coisas ininteligíveis e seus sibilos parecem demais com os dos ratos quando conversam. A Praça Santo Andrade é agora um filme trash de zumbis! Algumas luzes de alguns apartamentos acendem. O homem, encurralado no banco de jardim, saca uma arma. Algo inimaginável minutos atrás! Diogo Boss nem percebeu que tomou o conhaque de um gole só. Ouve-se um tiro, depois outro e outro e outro e então que os mendigos vão caindo como moscas. Os passarinhos levantam voo assustados e um barulho enorme de asas acorda mais apartamentos e novas luzes acendem; agora Diogo Boss pode ver que algumas pessoas saem nas sacadas e janelas. Outros mendigos correm, mas são facilmente alcançados pelo revólver do dono do cachorro. A prostituta implora por sua vida e recebe um tiro entre os olhos, o velho abre os braços como se fosse Jesus Cristo ressuscitado e recebe um tiro no meio do peito. É bela a sua despedida da vida. Diogo Boss tem a impressão de ver sua boca abrir-se num leve sorriso e parece ler sua última sentença: “Enfim”. É, sem qualquer dúvida, uma matança! Mas também, o que esperar de uma madrugada daquelas? Quente, fria, silenciosa e barulhenta? Na correria, um dos mendigos olha para cima e seus olhos assustados cruzam com os olhos frios e calmos de Diogo Boss no alto do seu conforto. São segundos de puro apaixonamento. Aqueles que antecedem o pior. Sim, porque o mendigo já tomba com um tiro nas costas. Que fazer com os mendigos, com as prostitutas e com os ratos? Por que sempre que estão em situações limite olham no profundo de nossos olhos como se nos cobrassem uma solução para os problemas da humanidade? Nada posso fazer, pensou Diogo Boss. Sou só uma testemunha, nada quero da vida além disso e nada espero além de algum espetáculo que encha meus olhos e provoque o meu tédio. A vida é sem graça, sem cor e sem cheiro. E caem os mendigos ensanguentados e frágeis! É preciso ter pena? Algum tipo de piedade? Quem se apieda dos ratos que, desesperados, despertam na noite em busca de comida, lutando bravamente por suas vidinhas, à margem, tratados como pestes? Eles que, como Diogo Boss, não pediram pra nascer e nem sabem que transmitem doenças. Quem reza pelos ratos? Ah, sim, o ser humano é digno de lástima, como disse Strindberg, e afinal de contas são apenas alguns mendigos, uma prostituta e um velho com sangue no canto da boca que se despedem de uma vida miserável. Inútil? Não, inútil não, pensa Diogo Boss, mas miserável sim. Como os ratos que riem entre os dentes, escondidos nos tufos de plantas, cantos de calçadas e buracos de árvores. Engraçado é que não se ouve uma sirene de polícia, nada! Onde andará a segurança? Dormindo? Mas como alguém pode achar que está seguro dormindo? Dormir é um perigo, dormir é abandonar-se ao acaso, deixar-se vulnerável. Quem, em sã consciência, dormiria se soubesse os riscos que corre? E os ratos? E a matança? Tudo é vulnerabilidade. O dono do cachorro, em pé sobre o banco, recarrega a arma. Quem diria que veio à Praça Santos Andrade com seu poodle, armado até os dentes? Implacável ele aponta a arma para uma sacada qualquer e atira. Um corpo projeta-se no espaço, ferido mortalmente. Uma despedida do oitavo andar! Homem ou mulher? Diogo Boss não consegue ver direito, é míope. E o poodle? Ah, que lindo! Peludo, fofo e sorridente, passeia serelepe pelo gramado, cheirando, mijando e defecando como se absolutamente nada estivesse acontecendo. E sabe o quê?, pensa Diogo Boss, como um cachorro, nada está acontecendo mesmo. Se pensasse como um rato, cairia na gargalhada. E se pensasse como todos os ratos acordaria toda Curitiba e seria tudo uma grande farra. Quatro e quarenta e ele bebe mais uma dose de conhaque. Uma leve tontura balança sua imaginação. Mais duas ou três doses e cairá, desmaiado de sono no sofá velho e descosturado. Mas ainda não, porque há os ratos, o assassino, os mortos, os vizinhos e o poodle. O homem e seu revólver são uma coisa só. Ele vai atirando para o alto e os corpos vão despencando, antes curiosos, agora curiosidade dos outros. E, de repente, todos estão mortos. Tédio absoluto. Diogo Boss só ouve a própria respiração e só vê o homem e seu revólver, estático sobre o banco, tão rígido quanto a estátua de Rui Barbosa. Até o braço permanece erguido. A arma caiu e ele não tem mais nenhuma utilidade. O poodle continua se divertindo com a liberdade. Os ratos ainda não arriscaram movimento. Do outro lado da cidade, talvez no Bacacheri, estouram fogos de artifício. Alguém atingiu um orgasmo, pensa Diogo Boss. Mas na Praça Santos Andrade é só morte, sangue e poodle. Diogo Boss não tem medo, debruça-se no parapeito de seu sexto andar e contempla a paz, agora tomando conhaque no gargalo. Como é plácido o mundo sem mendigos, prostitutas e vizinhos. A paz é ilusão. É quando a estátua do dono do cachorro se move. O homem coloca um último projétil na arma. Aponta para a própria cabeça e atira. Cai. E como era de se esperar, nada acontece. Diogo Boss toma mais um gole de conhaque. O poodle talvez perceba que seu dono se foi. Olha, meio sem graça para o corpo, e continua cheirando as flores e as plantas. Depois resolve, pela primeira vez, aventurar-se pela Rua XV de Novembro, e vai, faceiro na direção da Praça Osório. Mais um mendigo, pensa Diogo Boss. E agora é tudo mesmo uma grande inutilidade. A Praça Santos Andrade, do sexto andar, parece uma praça de guerra. Cinco horas. Que fazer? Poderia ligar a televisão, ler um livro, escrever alguma bobagem, rezar, tentar uma meditação. Curiosidade. Diogo Boss resolve descer até a praça. Pega o elevador e deixa, de propósito, a porta do seu apartamento aberta. Chega no hall e cumprimenta o porteiro, que lê a Bíblia. E sai para a praça. Vazia, silenciosa, decorada, linda, como se tivesse sido limpa pelas línguas dos garis. Senta no banco da praça e resolve esperar clarear, aguardar os primeiros movimentos da cidade, os primeiros carros, as primeiras buzinas, os primeiros barulhos de portas de aço abrindo-se e os primeiros humanos. Senta e também espera os ratos. E eles chegam. Uma ratazana cheirosa, metida a besta estaciona bem na sua frente, entre seus pés. “Você é bem corajosa”, diz Diogo Boss. “Sou mesmo!”, ela responde. Namoram-se. Olham-se profundamente. “Que é que você quer de mim?”, pergunta a ratazana. “Simples”, ele diz. “O óbvio.”. “O quê?”. Quem somos nós?


Edson Bueno é diretor, dramaturgo, roteirista e ator. Com 77 peças dirigidas, sendo 45 de sua autoria, já ganhou vários prêmios, entre eles o Troféu Gralha Azul de melhor diretor de teatro do Paraná. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Rafael Sica