Em busca de Curitiba

Serafim bailarino


Luís Henrique Pellanda

Pense num cara bonito. Num serafim bailarino, à prova de hesitações e armado de gentilezas. Pense num galã complexo, de unhas e sobrancelhas perfeitas, mas trajes pobres e lindos, sapatos de segunda mão engraxados com perícia. Ou pense num nadador de ponta, um salva-vidas submerso em si próprio. Se quiser, acrescente à fantasia de sua preferência o calor de um olhar azulado, a boca de um efebo, um queixo bipartido. Sobre o peito largo do anjo, não deixe de notar sua coleção de medalhas de ouro e cachos dourados. Não tenha vergonha de se deixar seduzir por ele ou pelos estereótipos que o representam. Eles servem para encurtar a distância entre a realidade do personagem, tão impalpável, e o teu entendimento. Por isso, fique à vontade, são clichês úteis, pode usar. Misture todos e, sim, você quase terá adivinhado: este cara aí, na tua mente, sou eu, ou poderia ser, caso imaginar minha beleza fosse factível. Desculpe falar disso, mas há nela uma carga de perigo que narrativa alguma suporta. Me conceba logo, portanto, e como achar melhor. Não tentarei mais me descrever, não verbalmente. Basta que eu diga: pense num cara bonito. Num serafim bailarino. No mais, é preciso que você me veja.
serafim

































Um anjo louro à solta na Praça Tiradentes, pode ser? É, estou sempre aqui, mas você não me enxergará se não for essa a tua necessidade. Para saber mais de mim, respire fundo. Sentiu o aroma de rosas e incensos no vento entre as figueiras? Note que ele não vem das casas de umbanda ao nosso redor. É o meu hálito, a minha transpiração noturna, que teima em não assentar. Nem mesmo dentro da catedral, onde passo a maior parte do tempo. Ali, você até será capaz de me farejar, espero que com prazer, mas nunca saberá o que os meus perfumes realmente prenunciam. Tenho como me esconder neles, me camuflo bem, camaleão de múltiplos recursos. Mudo de cheiro conforme as horas avançam. Faço vozes, imito pássaros, finjo de morto, viro estátua. Só apareço no momento adequado e à pessoa certa. Chegará a tua vez.

Até lá, aguardo quieto, atrás de uma coluna lateral, ou à sombra do púlpito, dentro das roupas que você me deu. Observo o entra-e-sai de fiéis no templo, homens ou mulheres, não faz diferença para mim, imune a tantos venenos e açúcares. Não sou como você, vigio em paz, despreocupado, livre das tentações menores. Não me mexo, não pisco, não tremo. Posso ficar até dez, quinze minutos sem mover os pés, e muitos visitantes ou turistas, ao cruzarem comigo nesse estado, me confundem com uma imagem de santo mal acabada, comida de cupins, a tinta descascando. Nada que valha a pena fotografar, apenas um mártir mendicante, madeira que vai perdendo o verniz, esquecida num canto, à espera de algum remanejamento após a reforma recente do prédio. Ah, quanta dor na obscuridade, você sabe como é. Cubro metade do rosto com alguma peça de pano barata, um boné, uma aba de casaco, o cobertor de franjas com que oculto asas e armas. Não, não aprecio a invisibilidade, não particularmente, e a outra metade da minha cara, minguante, chega a brilhar de suor e contrariedade. Mas ninguém repara, nem você, e sumir dentro de mim e dos outros é parte fundamental do que faço, um dos meus grandes talentos.

Em geral, essa tocaia costuma ser breve, ainda bem. O trânsito na catedral é intenso, e não demora a se insinuar por ali um possível cliente, o primeiro do dia. Aí não tem erro, quando o vejo um alarme dispara aqui dentro: é este, vai fundo, mergulha. Já vai, eu digo. Às vezes é só uma ordem interior, uma cólica falante. Covarde, você a tomaria por uma indisposição estomacal, ou um espasmo no esôfago, não fala o idioma das vísceras. Pois saiba que cada arritmia nos guarda um conselho ancestral, uma mensagem decodificada. Eu escuto. Às vezes o que me bate é uma fome, e as fomes são graves, têm um timbre baixo, severo. Mas, dependendo da estação, o que pega mesmo são as brotoejas, e então me vem uma ardência no peito que depilei de manhãzinha, uma coceira nas virilhas quase lisas, os pelos crescendo cada vez mais duros, grossos. Resisto fácil a esse chamado da pele, nosso imenso órgão mudo, esse país que nos envolve, não me coço, e não abandono minha posição de predador até receber um novo sinal, que corrobore minhas impressões iniciais. Peço ao meu comandante uma última confirma-ção, algo externo ao meu território físico, às fronteiras da minha encarnação terrestre, e o vitral que retrata a anunciação estala alto, à medida que a manhã esquenta. Excelente, penso. Um pombo supostamente perdido cruza o ar empoeirado e deixa cair duas ou três penas sobre o indivíduo em questão. É ele, comemoro, é hora de agir, vai, vai.

Mas ainda não. Um pouco mais de cuidado. Sempre espero que meus alvos, masculinos ou femininos, se dirijam a um banco, quero que se ajoelhem ou sentem logo e, atenção, isto é importante: evito as mulheres que acendem velas — e são sempre mulheres a acender velas. Não estão no ponto. Calmas, desfilam até as mesinhas indicadas à entrada da catedral e depositam ali a pequena chama de sua fé. A premeditação desse gesto, às vezes diário ou semanal, acusa uma tranquilidade que me exaspera. Rezam como quem repete um mantra, a segurança inabalável, os cochichos de robô. De onde vem essa gente, onde aprenderam a gíria das máquinas? Desconheço o deus que as atende. Confiam nas palavras mais que no verbo. Não sabem que prece boa é a de improviso, a oração ridícula, aberta ao equívoco, às interpretações duvidosas? Pois prefiro os homens simples, quase analfabetos, as vítimas humilhadas da cultura e do mercado. Ou as moças que entram na catedral sem pensar, sem saber que entraram. Aquelas que estão de passagem pela Tiradentes e, ao desembarcarem na estação-tubo, a caminho do trabalho, das compras de Natal ou do médico, radiografia em punho, subitamente afogueadas, ouvem a brisa introduzir a praga entre seus brincos de argola, sussurrar a sugestão de uma moléstia já avançada, um comando de morte. Ah, essas são as melhores. Vivem uma angústia que ninguém nomeia, sempre tomadas por um medo ou um desejo qualquer, impronunciável como as doenças ruins de antigamente, tão perigosas de invocar. Essas mulheres, sim, me surgem ariscas, desafiadoras, o sinal-da-cruz longe de combinar com a maquiagem, com o vestido de passear no Centro, a sandália de cortiça alta, e, desequilibradas de nascença, mais caem que se ajoelham. Desabam sobre o genuflexório. Adoro drama, as quedas são ótimas e o choro, recorrente. Elas gemem com desgosto e surpresa, sempre pedindo, pedindo, pedindo alguma coisa, mas nunca o perdão, jamais. O que elas querem? Ora, o mesmo que você: uma ajuda com as contas, um atalho para o sucesso, um favor político, a restituição de um amor, a saúde eterna. Uma história digna, quem sabe? Mas não, nunca querem uma esperança, querem certezas.

Enquanto choram, adianto o meu trabalho. Aproveito para, aos poucos, religar o corpo. Discretamente alongo o pescoço fino e musculoso, as articulações dos tornozelos, dos pulsos, dos joelhos. Tudo funcionando. Estralo as vértebras uma a uma, de cima para baixo, minha coluna já pertenceu a uma cobra mítica, e cresço uns cinco centímetros. Retiro do bolso uma velha lixa de aço inoxidável; no cabo, esculpida, uma linda princesinha de véus rosados. Me aproximo do suplicante da vez, em silêncio, e me acomodo na extremidade oposta do banco onde ancorou seus sofrimentos. Não peço licença, não me apresento. Fico ali, calado durante trinta, quarenta segundos, um minuto ou mais, lixando as unhas, à espera do contato. Sou forte de paciência, não gosto de apressar uma abordagem, e essa gente é assim mesmo, autocentrada, demora a perceber que alguém as observa. Rezar, além do mais, é uma atividade egoísta, um ato de petulância extrema, é chamar Deus para uma reunião de emergência, e para tratar de interesses rigorosamente pessoais.

No fundo, ele não liga. É como você, gosta de conversar. Sei disso porque passamos muito tempo juntos, sabe? Eu e as nuvens lá em cima. E Deus, para mim, são elas, as nuvens. Seus braços, suas mãos, seus dedos sobre nós, sempre em movimento, em mágica suspensão. Quando quero encontrá-lo, olho para o céu. Se ele estiver azul ou estrelado, não o vejo, me preocupo, para onde foi? Mas se o céu estiver encoberto, sei que estamos protegidos. Nesse sentido, tua cidade, com esse firmamento grisalho, é boa e abençoada, e as barbas de Deus, você verá, se sonhar com elas, têm a mesma cor de cinza.

Assim, quando finalmente faço o contato, o ambiente da catedral se escurece. A pessoa ao meu lado interrompe o choro, a atenção atraída por uma isca insuspeitada, e vira o rosto em minha direção, um anjo de luz a dividir com ela a aflição e o assento, as unhas plenas de esmalte e purpurina, o sorriso sóbrio, denotando experiência, empatia e, não vou negar, sensualidade. Ensaio, então, um ou dois meneios de cabeça, a auréola refulgente, receita infalível de comoção: sim, eu te compreendo, alcanço a tua dor, pode ficar sossegado, vai dar tudo certo. Ah, sim, eu pressinto as nuvens se acumulando sobre o templo, e minha beleza resplandece nessa penumbra, desnorteia quem a vê. Às vezes chove e, quando troveja ou relampeia, o efeito é bárbaro, colho reações de vários tipos. Alguns, ao me verem, riem sem motivo, e logo retomam o choro, agradecidos por algo que sequer apreenderam racionalmente. Outros se levantam, no susto, e se afastam depressa, trôpegos, temendo o inexplicável em meus caracóis. Há os que soltam um grito curto, e depois me pedem desculpas. Eu respondo que está tudo bem, e que sempre estará tudo bem, que podem ir, suas preces serão consideradas. Sugiro que partam em paz e eles partem, obedientes. Mesmo os que tentam uma aproximação mais ousada, perplexos com a minha aparição, mesmo os que arranjam pretextos para tocar meus antebraços, os que perguntam pelo significado dos códigos tatuados ali. Respondo que são números secretos, a senha de uma conta especial, onde Deus de-posita o salário dos anjos, um cofre que todo homem ou mulher julgaria vazio, se pudesse abri-lo.

Em geral, isso é tudo que acontece, umas cinco, seis vezes até o fim da tarde. Acha pouco? Sei que não. Quando criança, lembre-se, você queria ser salva-vidas. Bem cedo entendeu que, se Deus nos dá uma série de qualidades, ele tem um plano para elas. Inteligência, charme, velocidade, força, determinação, poder de sedução e convencimento, habilidade para mentir, facilidade para matar. Sei que fui designado para missões aparentemente menos banais, mas a humanidade e eu temos algo em comum: ainda estamos no começo. Pode acreditar. Coisas grandes estão agendadas para nós, eu te garanto. Não foi à toa que tive um passado de erudição, uma educação na elite. Se você duvida, te desafio a explicar a minha sensibilidade, a maneira elegante pela qual me expresso, inclusive corporalmente, ou as treze línguas, mortas ou moribundas, que aprendi sem estudar. Falo com as plantas, você já falou? Com as tipuanas da Ébano, as palmeiras da Cândido Lopes, as floreiras da Boca, e até com os pinhões de petit-pavé. Falo com eles, e transcrevo essas conversas todas, está tudo gravado no alto dos prédios da região, veja, não é segredo algum, as pichações dão conta do futuro que nos aguarda, um futuro que eu também sei ler no emaranhamento das raízes que se erguem e rasgam as calçadas de Curitiba, no verde histérico das tiribas e dos butiazeiros da Osório, no desenho das folhas secas de plátano sobre o asfalto do Passeio Público. Conheço o futuro e, fique sabendo, tenho uma péssima notícia a respeito: ele é de esperança. Pode espalhar por aí, meu amigo: esperança.

Assim, quando anoitece, adormeço sem sobressaltos. Se não feliz, satisfeito. Antes, danço sob a marquise da Biblioteca Pública. É quando enfim me permito aparecer para todos, e até para você, caso tenha gosto para o balé. Trata-se de uma peça breve, um ritual de celebração da vida. Meus parceiros de rua agradecem, aplaudem minha arte. Danço para eles, os meus meninos queridos, e logo me vejo cercado por longas serpentes de fumo e de fogo. Depois, dormimos todos enrodilhados, abraçados, velados pelo céu laranja das noites daqui, e meu perfume de rosas e incensos nos embala e embriaga, faz florescer as figueiras da Tiradentes, sobe e volta das nuvens.

Quando amanhece, espero abrirem a Biblioteca, entro e vou ao banheiro cuidar da minha higiene. Tiro a peruca e a escovo com cuidado. Penduro meus colares na torneira, largo a tiara, os anéis na pia. Lavo o rosto, o crânio raspado, as lentes azuis. Com minha lixa de aço, ataco a cidade debaixo destas unhas. Retoco as sobrancelhas, passo uma gilete no peito, na penugem do queixo, um batom bege. E venho secar minhas seis asas no bafo aqui fora, sob o mormaço que nos protege.

Está me vendo agora? Eu sou este cara aí, na tua mente. Então acorde e lute comigo, ou dance comigo, a escolha é tua. Só não tente me descrever, nem roubar o meu trabalho, ou usurpar a minha espada. Não me transforme numa ficção limpa e lógica. Os cemitérios já estão cheios de anjos de pedra.


Luís Henrique Pellanda nasceu em 1973. É escritor, jornalista e músico. Autor dos livros O macaco ornamental (2009) e Nós passaremos em branco (2011). Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Guilherme Caldas