Em Busca de Curitiba | Otavio Linhares

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dentro do ônibus passando em frente a santa casa de misericórdia olha o que acaba de subir. uma morena índia de calças vermelhas justas e sexo bem definido e botas longas jaqueta azul de nylon vison com gola falsificada de pele de raposa e peitos salientes e cabelos pretos e longos até o grande vão da bunda que me deseja e olhos de quem quer devorar. a amiga dela sobe logo atrás. pele bem branquinha alva esfregada em quiboa. cara de guria moleca. narizinho rebitado e sardinhas e um pouco mais alta que a amiga. um e setenta. meu número. meio desengonçada. pezinhos tortos pra dentro. olhos caídos. vozinha rouca. peitos grandes e fartos de polaca batateira. sorrisinho hipnotizante. não deve ter nem vinte anos a danadinha. do jeito que eu gosto a mongolóide. passaram a catraca e estão vindo aqui pra trás. isso. vem com o papai. não. não vieram. pararam quase no meio do ônibus. porque aquele idiota está levantando? merda. sempre tem um mauricinho babaca metido a don juan pra ceder seu lugar a meninas bonitas nos ônibus. vou ter que ficar na panorâmica. a indiazinha sentou. a loirinha agachou e cochichou no ouvido dela. gostosa. o que? olhou pra mim? cochichou de novo. olhou pra mim. claro que olhou. hoje eu tiro a sorte grande. já pensou? duas dessas guardiãs dos segredos do mundo e eu. vou ter que atacar com o que tenho de melhor. charme na ponta da arma. sempre funciona. finjo que não dou bola e no fim é o bote do tubarão. pa pum! sempre arranco um pedaço. língua afiada. sempre funciona com as guardiãs. vamos lá vou mostrar como funciona. viro a cabeça devagar olhando pela janela procurando alguma coisa. dou aquela olhada malandra de revesgueio. passo o olhar pelas meninas. faço o scanner do atirador. só os mestres detetives conhecem esse truque. a loirinha agora está agachada conversando em voz baixa com a amiga. a bunda dela faz a curva da lua. delícia eu três dias nadando na carne redonda da lua nova da bunda. a morena estica o pescoço pra fora do banco e dá uma olhada direta pra mim. nada de sorrizinhos nem charminhos. semblante sério e impositivo. vem! ela deve estar gozando da minha cara. vem agora ela diz. é impossível. desvio o olhar pra baixo e volto pro chão de alumínio. nós duas. vem! que merda. estou bancando o cuzão. não posso dar esse mole. não achei que elas fossem me dar essa bola assim desse jeito. o tanque de guerra me atropela no front de batalha. não estava preparado pra esse ataque. amador. olha pra mim. elas querem me deixar louco. não deve ser comigo. claro que é com você. vai deixar as duas falando? vai lá. mostra quem é o papi. e se elas tiverem de brincadeira? olha aqui! olha pra nós. não olha pra baixo. tá vendo?! elas te querem! larga mão de bancar o piazote e vai lá. chega junto apresentando a pistolona não dá tempo pra conversinha. cartão de visita na mão. olhar de animal voraz. não sei tô sentindo que não vai rolar. como assim? vai andando e no caminho dá aquela passada de mão no cabelo olha pela janela franze as sobrancelhas respira fundo e pow! one shot! one shot man! tiro no alvo. sim ou não? sim! repete. sim! você é o caçador. o caçador do planalto dos pinheirais. o maior de todos. o rei das araucárias. o selvagem. muito bem eu vou lá. tô indo garotas. vem gatão. vem pra nós duas. a morena faz biquinho de matadora. a loirinha levantou e prende o cabelo pra deixar o pescoço à mostra. é hoje! vou te arrancar esse pescocinho na chupada. isso. vem. arranca. ajeito o ombro. passo a mão no rosto pra tirar o suor. ajeito a capanga e movo o pé esquerdo jogando o corpo pro lado já levantando o direito. pura sedução. o dançarino dos portais do inferno. o golpe fatal está sendo armado dentro das entranhas do mundo. ergo a cabeça e sou o mundo que flui. orgulho. vaidade. vai lá garanhão. não deixa elas te trapacearem agora caçador. confio em você. sou o reprodutor das estrebarias de áugias. sinto a força da terra. por um instante me ocorre que sou o superhomem e que posso parar a terra. levanto os olhos. aponto o queixo pra frente. peitoral inflamado. como nos velhos tempos. sim. como nos velhos tempos. sou o superhomem. com um simples movimento dos meus dedos o tempo para. olho pra frente e todos assistem de camarote. agora vai. a cena corta pro quadro das meninas e onde eu devia estar estão dois hércules das araucárias. duas angustifólias gigantes. dois tipos morenos. barba por fazer. uns vinte anos cada. george clooney e brad pitt bronzeados regatinha bermuda chinelinho havaiana. dois estilo gatões de propaganda. comida pra cachorro. e elas estão na deles. sei que estão. sorriem e babam pelos bonitões. o superhomem agora é um dente-de-leão leve e inofensivo soprado nas mãos de uma inocente criança. volto pra baixo da terra rápido. uma pazada de sal na velha lagartixa. não tem problema. com o tempo a gente se acostuma e caleja. aprendi o gosto da rejeição ainda cedo. então giro sobre o mesmo pé esquerdo de quem ia pro golpe fatal e dou um 180º. minha manobra preferida de skate. dou as costas pras gatinhas e faço o louco. alguns me olham. outros nem aí. olho o celular. finjo que toca. meto na orelha alô alô. chacoalho o aparelho. dou uma reclamadinha pra disfarçar. ai essas operadoras. dá até uma coisa ruim quando alguém liga. a gente nunca sabe quando isso vai funcionar. e fecho com uma risadinha manhosa marota. risada de hiena faminta. o ônibus freia. pelo canto dos olhos vejo o banco da praça. estou perto do centro. e bem na escada. merda. nunca fique numa escada em pontos de alta circulação de pessoas. você será esmagado por sapatos bolsas mochilas de colégio e sacolas de supermercados. me encolho na frente da porta onde um bando de gente começa a descer dá licença dá licença. claro que sim. pisão no pé. opa desculpa. dá licença. obrigada. por nada senhora. uma menina me xinga. não tenho como me mover. sai daí meu senhor está atrapalhando não tá vendo. desculpe-me senhora foi sem querer. que sem querer que nada. dá licença. ela me chamou de senhor? vejo as duas meninas indo rua acima com os garotões. gente trombando amiúde. opa desculpe. perco a concentração. quase desço. vai lá desce lá corre atrás delas. fico parado vendo todos descendo. posiciono a capanga na frente da cintura pra não pensarem que sou um tarado de porta de ônibus. perco as meninas de vista. viraram à direita na avenida. e todos me esbarram pra conseguir descer antes que o motorista resolva arrancar. hoje em dia perder um ponto de ônibus é meio caminho pra quem quer ser demitido. a porta fecha. sinto o peito murchar. estou murcho. situação triste. derrotado. volto o corpo pro lado e sento. nessa hora o ônibus é uma caverna. todas as beldades se foram. estamos eu e o velho roçador e o cobrador e o motorista. e ainda tem mais alguns cidadãos que vão desembarcar na praça seguinte pra ficar por lá curtindo a manhã de sol feito pombos à espera de migalhas.


Otavio Linhares nasceu em Curitiba (PR), em 1978. Com formação em Filosofia, História e Artes Cênicas, é editor da revista de literatura curitibana Jandique e do selo Encrenca — Literatura de Invenção. O conto aqui publicado integra seu livro de estreia, Pancrácio, que será lançado neste mês. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Iuri de Sá