Em Busca de Curitiba: Luiz Andrioli

Passagem Marcada

jazz

Para a despedida, comprou um conjuntinho na Renner depois de ver pelo celular a previsão do tempo. Moça pequena, rosto delicado, corpo de criança. Cismou que para conseguir namorado, tinha que colocar silicone. Parcelou em sete vezes, usou parte do dinheiro da bolsa de mestrado da universidade. Sobrava pouco para gastar, mas no fundo, ainda era sustentada pelos pais. Morava perto, não precisava pegar ônibus. 25 anos. Dava oito-horas aula por semana. Conceito A na dissertação. Ficou muito amiga da orientadora que havia perdido uma filha ainda adolescente. Foi então indicada para a melhor bolsa do programa em Londres. 


Suas mãos entrelaçadas perto do queixo eram como uma seta para o decote. Renata suava nas palmas, por isso evitava deixá-las à mesa. Ao mesmo tempo, cruzar os dedos perto do queixo lhe disfarçava o nervosismo de quem insistia em olhar para a porta. 


— Quanto tempo vai ficar lá? – pergunta alguém da mesa. 


O jazz está alto. Ela precisa falar um pouco mais firme, além do que todos esperam. 


— Dois anos.


Nunca ficara tanto tempo longe de casa. Seu pai até oferecera pagar uma viagem de intercâmbio quando trancou a faculdade de Biologia. Tinha dúvidas se era o caminho certo, dar aulas, pesquisar, viver enfurnada em laboratórios. Parou por seis meses. Com um certo esforço da família, poderia ter vivido na Austrália, quem sabe. Mas não. Preferiu trabalhar no shopping vendendo roupas. Vendeu quase nada, era confundida com clientes. Não raro, com filhas de clientes. Mas foi bom. Conheceu gente nova. Voltou para a universidade sabendo que um diploma ao menos lhe pouparia as horas em pé para acumular comissão. 


— Renatinha, preciso ir. As meninas estão com a vó e a velha dorme cedo.


Abraçou Marcela. Um garçom levantou a bandeja por sobre as duas para não atrapalhar. 


— Manda um beijo para as gêmeas – Sorriu.


Entraram juntas na faculdade. Dois anos depois, Marcela engravidou do namorado de infância. Passaram a se ver menos, desde então. Nunca perderam a cumplicidade.


— Ele disse que vem?


A amiga sabia: não existia resposta. Cláudio era imprevisível. Novamente se abraçaram. Marcela oferecia carinho e sugeria resignação.


— Vida nova, Re. Vida nova – aconselhou.


Abraçaram-se novamente. Marcela ainda não se acostumara a sentir os seios grandes da outra. Brincavam com isso. Um pedaço de mulher praticamente encaixado naquela menina que saía para o mundo amparada por um bolsa de estudos, alojamento garantido e seguro de saúde. Pediram para alguém tirar um foto. Colaram as bochechas na pose. A amiga estava com o perfume que ganhara de Renata no amigo secreto da turma. Depois do flash, se olharam mais um tantinho. Em silêncio, a mãe da Gabi e da Gisele acariciou os cabelos fininhos da outra. Não disseram mais uma palavra sequer, era claro o conselho já repetido tantas vezes: “Esquece ele, Re. Aproveita esta viagem e enterra de vez esse babaca”.


Voltou para a mesa. Conferiu a ficha de consumação embaixo do celular, querendo na verdade ver a tela do iPhone. Nenhum torpedo, nem e-mail. Alguém passou pela mesa uma bandeja com brusquetas. Pegou uma e comeu, não havia jantado. Passara o dia arrumando as malas. Anteciparam o voo. Sairia na segunda. No domingo tinha um almoço de família na casa da avó. Aproveitou a arrumação para rever as fotos que tirara com Cláudio em Superaguí. Conhecera ele no trajeto de ida, parecia íntimo do barqueiro. Pediu licença para pular por cima das pernas esticadas dela. Abriu o isopor e tirou duas latinhas de cerveja. “depois eu pago”, disse para o dono do barco, que nem se deu ao trabalho de responder. Sentou ao seu lado, abriu as duas e ofereceu convicto. Renata se encantou e abriu espaço. 


— Você é bióloga? – Disse Cláudio. 


Ela era, mas achava que não parecia ser. Não estava indo para a reserva de Superaguí para pesquisar. Iria encontrar algumas amigas do curso para passar uns dias longe do barulho do carnaval. Apenas deu oi para as meninas na pousada. O resto do feriadão ficou entre a barraca do Cláudio e os passeios a pé pelos cantos desertos da ilha. Qualquer que fosse o destino, acabavam transando. Não contou nada em casa. Com o dinheiro que sobrou da pousada, comprou para Cláudio o vinil Paêbirú. Colocou em um envelope e mandou para o endereço que estava no cartão de visitas que ele lhe deu. Era de uma universidade particular, onde Cláudio dava aulas, tudo o que restou de concreto daquele homem ao fim dos quatro dias. Sabia de pistas, uma delas dizia respeito ao gosto pela música do Zé Ramalho. Entre uma transa e outra, dissera o quanto gostaria de ter novamente o vinil mais raro do artista, que lhe fora roubado quando morava na casa do estudante universitário. 


Renata havia gozado pela primeira vez com um homem. Jamais imaginava que isso pudesse acontecer em uma barraca, chovendo, sem banho, depois de um dia longo andando de barco pelas ilhotas ao redor, cansada e com a pele ardendo. Nunca experimentara trepar (sim, a palavra era exatamente esta) de quatro com um homem, sentir a barriga dele lhe empurrando as nádegas magrinhas. As amigas insistiam que ela possuía bundinha de criança. Por anos deixou de usar biquíni por conta disso. Gozou de olhos fechados, com a boca babando na lona do chão da barraca, a areia esfoliando seu rosto doce. 


Olhava para a porta e repassava mentalmente se havia de fato colocado na mala tudo o que precisaria. A mãe lhe ajudara com os documentos, uma irmã com as roupas. Deixou algumas peças para trás, para a alegria das duas. Todas na casa tinham o mesmo corpo. O pai estava viajando, despediram-se na semana anterior. 


— Renatinha — gritou na mesa Arnaldão, pós-doc em Embriologia — já sabe o que vai pesquisar com os gringos?


Tinha proposto de fato um bom projeto. Mesmo a orientadora não acompanhava sua carga de provocações a partir dos textos em pelo menos quatro línguas diferentes. Embarcou em uma linha de pesquisa que era referência na Universidade, algo sobre componentes hereditários da obesidade. Justo ela, tão magrinha. 


Passou os olhos pelos amigos da mesa. Em maior ou menor grau, todos sabiam da história. Alguns até previam no começo que o final não seria bom. Cláudio estudava as aranhas-marrons, fartas em Curitiba, traiçoeiras em seus esconderijos entocados nas casas antigas de madeira. 


Os músicos embalaram do jazz para um sambinha mais ritmado. Batucou com as unhas na mesa o ritmo, podia disfarçar um tanto da mão nervosa. Os pés já estavam tremendo dentro do salto doze, o máximo que conseguia usar. Comprou um sapatinho na Teffé, aproveitou a promoção da rua das lojas de calçados. Dois na verdade. E mais três botas. Não sabia se poderia se dar a este tipo de luxo sendo bolsista em um país estrangeiro. Estava usando o mais bonito. 


Cláudio era alto e forte. Trocaram algumas mensagens pelo celular durante a semana. Talvez devesse ligar e perguntar se ele viria. Sim, seria se rebaixar. Uma fêmea não deve se privar da condição de presa. Em poucas horas seria uma presa em fuga? De que lhe valeu todo o orgulho, amor próprio à flor da pele, bradar na cantina da faculdade que dele nem a sombra a interessava mais? 


Seguia batucando na mesa. Alguns levantaram para dançar. A turma do mestrado inventou de fazer aulas de dança de salão na sexta-feira há uns anos. Ela foi junto para encerrar a semana com um pouco de suor no corpo. Descobriu-se fácil demais de ser conduzida, parceira boa de ritmo, compreensiva com os pisões e tropeços daqueles acadêmicos pouco afeitos a colocar o corpo em movimento. O curso fez bem para a galera, quase toda agora a sua frente, compondo uma massa de alegria que em nada tinha ver o que sentia ao olhar a porta do bar. Melhor ao menos mandar um torpedo. Escreveu algo que podia dizer tudo, sem falar nada.

acelerador
“Estou aqui na frente”, a resposta que veio em dois minutos.
Foi até a janela e viu o tipo encostado na moto. Aproveitou-se da dança com os passinhos das aulas que tomavam a atenção de todos e foi até lá. Quando a viu se aproximando, ele montou na moto, dono de uma certeza de que ela apearia. Atravessando a rua, pensou no casaquinho que ficara pendurado no encosto da cadeira. 


Cláudio gostava, de certa forma, de Renata. Não sabia apenas que forma era aquela de gostar sem querer a companhia. Quando soube pelo informativo do Centro Acadêmico da bolsa que ela ganhara, ficou feliz. Seria um bom final para o que começara por acaso em Superaguí. Renata era frágil, pequena, delicada, gostosa, quente, disposta, aconchegante. Na moto, ela transpassou as mãos pela sua cintura, apoiou os seios firmes contra suas costas. Pouco falaram antes que ela trepasse na moto. Ele mesmo não sabia por que tinha decidido vê-la, nada podia oferecer, tampouco pedir. Parou em frente às ruínas de São Francisco, perto de uma barraquinha de cachorro-quente. 


— Está decidida? – disse Cláudio, depois de um abraço demorado que sufocou o choro de Renata.

— É o melhor. 


Não tinha certeza das palavras. Notara na mão do lado do acelerador a aliança dourada. Torcia para que ele a levasse naquela última noite para o Pops, duas quadras pra baixo, trinta reais por uma hora e meia de despedida em um lençol amarelado. 


pernas
Cláudio tocou direto para a casa dela, teria preferido não tirar o capacete no adeus: esconderia a única lágrima. Antes de entrar portão adentro, ela deixou o rosto disponível para o beijo possível, mas ganhou um descuidado selinho no canto da boca. Da cama, mandou um torpedo para uma amiga, dando explicações do sumiço e pedindo que trouxesse no dia seguinte o casaquinho que ficou na cadeira. Deitou sem tomar banho, querendo preservar o cheiro do motoqueiro para quem sabe levá-lo em alguma necessaire. Demorou para pegar no sono. Tirou do criado mudo o vibrador, que estava sem pilhas. Usara as duas últimas na máquina digital, que também esquecera na mesa do bar.

Luiz Andrioli é autor da obra infanto-juvenil A menina do circo (2009) e do livro de contos O laçador de cães (2012). Mestre em Estudos Literários pela UFPR com a dissertação “O silêncio do vampiro”, sobre a obra de Dalton Trevisan, também é jornalista e atua como gestor de conteúdo para TV e internet no Grupo RIC Paraná. Vive em Curitiba (PR).

Ilustrações: Carolina Vigna-Marú