Em Busca de Curitiba | Carlos Machado

Tropeço


Chutando pedrinhas do frio anterior entro no bar. Escondo o cansaço da semana que mal acabou e já começa decidida a partir vagarosamente, como um aperto de mão que não acontece, e, que de tão leve, fica parado no ar. Quando pisquei pro lado do balcão, levei os dedos aos olhos que acabaram de acordar e que ainda teimavam em ficar fechados. Forcei-os para saber, entre o cheiro da cebola que começa a ferver, quem eram aquelas pessoas que eu nunca tinha visto por ali, vestindo o mesmo avental vermelho de sempre. Tive ímpeto de sair, mas antes olhei com cuidado para a porta da frente a fim de me certificar que não tinha entrado no lugar errado. As mesas estavam no meio do caminho de todos os dias, só não achei minha cadeira de frente para o balcão. O cinzeiro estava virado de ponta cabeça e uma mulher com os cabelos escondidos debaixo de um lenço amarelo: pois, não?

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É incrível como a cidade foge aos nossos olhos. Assim, como quem não quer nada, faceira, imbuída de não compromissos de coisa alguma, nos prega peças a todo o momento. Ela se constrói, se remói para ficar em outra. Como em um baile com pares dançantes ou um céu de Münch, caminha, caminha para onde não se sabe. São situações como as que sempre aconteciam com minha avó quando ia à feira pela manhã, aqui ao lado: era só colocar os pés em casa para se lembrar que havia esquecido um quilo disso ou daquilo na última barraca. E o pior é que quando chegava na frente do feirante via que esse tal esquecido estava no fundo da bolsa (já na cozinha). Acho que escorregou. É isso que digo. A cidade escorrega pelos dedos sem ser vista e cai no fundo de uma bolsa qualquer. Só é lembrada quando vamos jogar fora centenas de papéis antigos do velho guarda-roupa. Toneladas de lembranças, pouco a pouco, sem serem vistas. Apenas pisadas. Nesse dia acho que me dei conta de que Curitiba nunca foi. Nunca será. Ela apenas é. A cada cisco que pinga em seus olhos. E o pior é que, muito embora tenha me dado conta disso (ou me iludo com a conta), não consigo entender como é que, depois de cinco anos, ainda sinto ânsia de vômito ao passar pela mesma rua de sempre. Pelo mesmo cheiro que não é mais igual, nem a cor, que agora é invisível. Ou ainda como um prédio colocado ao lado da calçada que, pela primeira vez, me consumiu, desaparece quando estou por ali pensando com cinco anos de atraso. Realmente não vejo por onde. Apenas me impaciento pelas ruas e sinto o estômago arder. E foi. Sumiu. Era um lugar estranho ao costume de todas as segundas-feiras. Acordar ouvindo Whitesnake é como tomar um copo de café com amor. Mas sem me esquecer das gotas amargas de própolis: evita o cheiro do resfriado. Chegar ao bom lugar de cada dia, que nos dá o pão. Amassar a cara para todos, retorcer em sinal de agradecimento e se virar como se acordado por horas sem estar cansado. Sim, meu caro, faz cinco anos que estendo o braço direito para o outro lado da cama e ele cai solto. Apenas o lençol desfeito. Moro apenas com rompantes de brevidade: o sofá amassado por seu corpo sempre em frente à TV, os pelos do cachorro em minha rinite incurável, a sandália de salto alto esperando pelas pernas torneadas e sempre tomando cuidado para desviar das palavras arremessadas contra a parece — espalhadas por cima de um Heitor dos Prazeres: deixa a moça dançar, rapaz! Isso ainda me causa dores no estômago. E pedras no rim, de frio de mais uma noite mal dormida. Assim começa sempre mais uma semana em uma cidade que não foi, nem será, apenas é. Os três primeiros tons movidos pela náusea da noite anterior, ainda esquecida por cima da cama e arrastada pelo quarto e sala. Pela janela o sino da igreja dando mostras de que ainda vestimos restos da província deixada de lado em frente à praça Rui Barbosa. E aqui, desse lado de cá, a vontade de Schopenhauer. Sempre em tom pastel. E tudo isso para falar do pastel. Sim, um de carne e um de queijo, por favor. Tosse. E não se esqueça do meu café-com-pouco-leite. Isso é apenas um espanto para o estômago. (Espanto de causar inveja aos outros, sim.) Gostava de ouvi-lo falar da vida de quando era do campo. Olhos sempre azuis, polaco. Quando sua mãe ainda lecionava para as quartas e primeiras séries na mesma sala com um quadro-negro sujo do barro da chuva de antes. Quando não se falava em mais nada a não ser em quantas sacas de algodão? Ele, ao lado dos irmãos mais novos, lia os quadrinhos de alguma história esquecida pelo filho do doutor. Tosse. Não se tinha notícias do barulho em tercina das buzinas de carros: era um som de cata-ventos que se via. Falava também de quando veio para Curitiba. Quando se rendeu à cidade que sorria provisoriamente à sua mãe. Veio para trabalhar no comércio.
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Apenas de relance. Depois iria estudar no Colégio Estadual do Paraná, Universidade Federal, tornaria-se médico como o da antiga casa, voltaria para o campo e cuidaria de sua pequena e esquecida cidade-memória. E da tosse. Mas se lembra sempre do dia em que se juntou ao óleo da fritura e que nunca mais parecia se separar. E assim foi a cada novo início da semana: um pouco de prosa para dar movimentação ao ser-estar dos verbos. Um cigarro sempre para fechar a conta e continuar ao lado por mais quarenta cortes na garganta. Eu estava ao lado da sensação de que valia a pena correr para o pastel e conversar com esse homem a cada novo dia. Sentia-me com expectativas. Tornou-se uma vontade incurável: uma noite péssima, falta de ar e lembranças, o despertador me dando ordens para ir ao banheiro, pegar os papéis do dia e sair para a rua. Entrar na pastelaria e me deparar com os dois olhos claros, cheios de palavras. Ternura. Aperto de mão demorado. Mas sempre vem o acaso. São segundos que se passam sem serem percebidos. Escapam pelos dedos. Desenroscam-se das unhas. Um dia qualquer e uma plaquinha que anunciava a venda. Mas assim? Sem mais nem menos? No fundo, ele (ou eu) acreditava que isso não fosse acontecer. Seria apenas uma vontade que ficaria por ali mesmo, até o fim. Qual fim? Ele queria se desfazer de uma vida que nunca quis e voltar para o que sua mãe tinha deixado para trás. Mas o tempo morreu. Morreram todos, aos poucos: veio para Curitiba com os irmãos, os pais. Um a um ficando pelo caminho, e ele na pastelaria. Da medicina tinha apenas o volume único de um livro antigo de anatomia, esquecido pelo filho do médico da infância. Muitas figuras. Nunca mais viu os pais, nunca mais ligou para os irmãos. Ficou apenas com fotografias e o cheiro. Decidiu que deveria quebrar a torneira do gás e nunca mais usá-la. Eu nunca tive certeza sobre sua solidão, mesmo conversando com ele todos os dias pela manhã. Nunca soube ao certo. Cansado. Fico com um gosto salgado na pele de saber que nunca mais o viria. Agora não posso mais ficar para o cafezinho e pigarro de cada dia, não sei mais do que se fala, como se fala. Se é que ainda fala. Apenas um pequeno fragmento de uma colcha de retalhos.

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Não. Eu não sabia o que responder a essa moça. Um cafezinho para esquentar Curitiba? Não, acho melhor apenas dar as costas e voltar. Mas assim? Sem dizer a que veio? Lógico, ela está atrás de um balcão, deve estar acostumada com todo tipo de cliente. Está acostumada? Desde quando? E só se passaram dois dias do último aceno que ele me deu parado no sinaleiro. De uma hora para outra. Agora, pensando com cuidado, me lembro que quando acelerei o carro, parecia me dizer que não estaria entre a gordura na segunda-feira. Vende-se. Foi tão sutil que acreditei estar me falando que nos viríamos na próxima segunda. E, com mais apuro ainda, posso vê-lo de costas arrumando os óculos e tossindo. Doutor, tem cura? Desde quando tem dificuldades com a vista? Não serei mais como nos outros começos de semana: serei como os meus domingos. Será que isso eu disse à mulher parada na minha frente, esperando por uma resposta? Talvez eu tenha pedido o jornal — ou a minha cara estava dizendo que só vim para ler as notícias. Ela me alcançou a Gazeta e disse que o café tinha acabado. Pode ser leite puro?

Sentado na frente de meu computador, olho em direção à sacada para um pequeno vão de Curitiba. Escuto a vista. Todos sons em surdinas de gritos. Apenas os de despedida: tchau, cara de mal. Até mais, Rabelais. Adeus, Mateus. Contornos de cinza com o céu ao lado da Serra do Mar. Olho no espelho que tenho na parede da sala: tem uma casca de feijão no dente da frente.

Tosse.


Carlos Machado nasceu em Curitiba (PR), em 1977. É músico, compositor, escritor e professor de literatura brasileira. Lançou os CDs Tendéu (2008), Samba Portátil (2010) e Longe (2012). É autor dos contos de A Voz do outro e Nós da província: diálogos com o carbono e dos romances Balada de uma retina sul-americana e Poeira fria. Vive em Curitiba (PR).

Ilustrações: Theo Szczepanski