Editorial - Cândido 61

A nossa xícara de café 


Rogério Pereira 



O amor às bibliotecas, do francês Jean Marie Goulemot, é um livro fundamental na vida de qualquer bom leitor. Após um panorâmico passeio pela história das bibliotecas e da leitura, Goulemot finaliza de maneira simples e amorosa: “É preciso preservar bibliotecas que sejam humanas e onde seja mantido o vínculo carnal com o livro, que reúnam nesse ato estranho — a leitura refletida — uma comunidade de seres lendo e, contudo, isolados. Que as bibliotecas permaneçam assim lugares de vida, onde as ideias não nasçam somente da relação entre um leitor e seu livro, mas também da conversa em torno de uma xícara de café, de encontros com leitores estrangeiros, do devaneio que invade o público no torpor de uma tarde de verão”. A nossa xícara de café Rogério Pereira 

Foi com este espírito que há exatos cinco anos, em agosto de 2011, nasceu o Cândido com sua capa a estampar um Paulo Leminski de bigodes imensos, no traço do ilustrador Rafael Sica, e o sugestivo título: “A linha que nunca termina”. Não era apenas mais um jornal sobre literatura, livros, leitura e bibliotecas — que muitos já garantiam nascer com os dias contados. Era o início de um novo projeto para a Biblioteca Pública do Paraná (BPP) — esta poderosa instituição que em março próximo completa 160 anos. Ou seja, um lugar de vida e de muitos encontros. Por aqui, passam cerca de 2,5 mil pessoas diariamente. 

Logo de cara, o Cândido — cuja tiragem inicial era de 5 mil exemplares; hoje, são 10 mil — exibiu a característica que marca a ferro sua personalidade editorial: a pluralidade de ideias, com as mais variadas vozes, sempre evitando privilegiar determinados grupos ou tendências estéticas. O jornal se apresenta como uma vitrine variada, cosmopolita e interessante da literatura brasileira contemporânea. Em suas atuais 40 páginas — no início, eram 32 páginas — é possível encontrar autores de Curitiba, do interior do Paraná e de outras regiões do País. 

Parte significativa do jornal é dedicada aos inéditos, seja poesia ou prosa — contos, crônicas e fragmentos de romance. Folhear as páginas do Cândido é deparar-se com a atual produção brasileira: nomes consagrados, autores cujas obras ainda precisam ser descobertas por um número expressivo de leitores e até mesmo estreantes, muitos dos quais tiveram os seus primeiros textos publicados aqui. Com isso, ao dialogar com uma tradição curitibana de veículos culturais, desde o Simbolismo passando pelos míticos revista Joaquim (1946-1948) e jornal Nicolau (1987- 1996), o Cândido contribui de maneira consistente para dilatar a nossa consciência a respeito dos livros e autores que nos cercam. 

Outra aposta é no conteúdo jornalístico: toda edição traz como destaque de capa uma grande reportagem, resultado do diálogo com professores universitários, críticos e autores de todo o Brasil. Além dos textos jornalísticos, há espaço para ensaios e artigos de pesquisadores, produzidos em linguagem acessível, a fim de encontrar ressonância nos mais variados públicos. Destaca-se ainda por ser um dos poucos, ou talvez o único, suplemento cultural mensal produzido integralmente por uma biblioteca pública brasileira. E isso, vale lembrar, num contexto em que os jornais e revistas cada vez mais abandonam a versão em papel para mergulhar apenas no mundo digital. 

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Nestes tempos tão apressados e conectados, um jornal com o perfil do Cândido coloca-se como um foco de resistência, uma espécie de ilha à disposição de todos nos balcões da BPP, onde é distribuído gratuitamente. A cena tornou- se comum: o leitor apanha a edição e caminha tranquilamente pelo amplo hall de entrada da biblioteca. Às vezes, senta-se ali mesmo para ler. Outras, escolhe os degraus da escadaria diante do prédio inaugurado em 1954. O jornal, nestes casos, torna-se um forte elo entre o leitor e a biblioteca, entre a biblioteca e a comunidade, entre o leitor e ele mesmo. A leitura do Cândido é (e acreditamos muito nisso) humanizadora. E reforça o projeto de biblioteca para o qual trabalhamos todos os dias. 

O Cândido ainda circula em todas as bibliotecas públicas e escolas de ensino médio do Paraná, além de ser enviado para diversas regiões do Brasil, a escritores, editores e jornalistas. Parte da tiragem é encaminhada para o projeto de remição de pena pela leitura no Paraná — iniciativa pioneira no país, em atividade desde 2012, e que conta atualmente com 2,5 mil participantes, quase 13% do total de 19,5 mil detentos no Estado. 

Com tudo isso, o Cândido integra uma ação que busca transformar a Biblioteca Pública do Paraná em um grande centro cultural, deixando para trás alguns estigmas que ainda marcam as bibliotecas Brasil afora. Desde 2011, uma ampla programação dá mais vida aos cerca de 8 mil metros quadrados da BPP, incluindo encontros com escritores, exposições, contação de histórias, apresentações musicais, peças de teatro, cursos de criação literária e de ilustração. E ao final de cada evento cultural, um exemplar do Cândido aguarda os leitores para lhes fazer agradável companhia. 

Rogério Pereira, jornalista e escritor, é diretor da Biblioteca Pública do Paraná desde janeiro de 2011.