Dicionário Amoroso | Alvaro Marechal

A de “Antonico”

Em maio de 1939 Ismael Silva tinha 33 anos, a idade de Cristo, e já fizera alguns milagres. Fundara a primeira escola de samba, a Deixa Falar, e havia sido um destacado compositor da chamada geração do Estácio que, 10 anos antes, fora responsável pela formatação do samba moderno, a qual perdura até hoje. A partir de 1929 tornara- se um sucesso, parceiro de Nílton Bastos e Noel Rosa, com a maioria de suas músicas gravadas por Francisco Alves, o grande cartaz do rádio na época.

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Ismael também puxara cadeia — pena de cinco anos de reclusão, dos quais, por bom comportamento, só cumprira dois, no presídio da Rua Frei Caneca — por ter dado um tiro na bunda de um folgado, de nome Edu Motorneiro, que tentara estuprar sua irmã Orestina. O “tresloucado gesto”, como anotaram os jornais, deu-se à porta do Café Pauliceia, esquina das Ruas Gomes Freire e Visconde do Rio Branco, e há quem afirme que o compositor sequer acertou o tal Motorneiro. Como nos bangue-bangues, o teco passou raspando.

De qualquer forma, sua carreira degringolou. Saindo da prisão, na pior, ele procurou ajuda com Pixinguinha, que, segundo testemunhos insuspeitos, era um santo.

O arquivo do museólogo Mozart de Araújo, incorporado ao acervo do Centro Cultural Banco do Brasil, traz um bilhete datilografado de Pixinguinha ao próprio Mozart escrito num misto de linguagem de repartição com rasgos de sentimentalismo. O que interessa é o trecho final: “(...) razão pela qual lembrei-me de solicitar ao velho amigo para interceder junto ao Luís Simões Lopes, a fim de conseguir uma colocação para o popular sambista, que tem lutado com dificuldade de vida. Sem mais, sendo você músico e o Luís Lopes, cantor, espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim”.

Luís Simões Lopes era um secretário do presidente Getúlio Vargas que gostava de cantar e supostamente tinha influência no meio musical. O jornalista e biógrafo Sérgio Cabral garante que Pixinguinha não escreveu o bilhete, o estilo não era o dele. E o emprego, com ou sem pistolão, jamais saiu.

A primeira gravação de “Antonico”, cuja letra repete quase integralmente um das frases do bilhete (“É necessário uma viração pro Nestor/ Que está vivendo em grande dificuldade/ Ele está mesmo dançando na corda bamba/ Ele é aquele que na escola de samba/ Toca cuíca, toca surdo e tamborim/ Faça por ele como se fosse por mim”), foi realizada em 1950 por Alcides Gerardi. Entre outros, há registros de Elza Soares e Gal Costa, bem melhores que o de Gerardi.

É um marco na linha evolutiva do samba, uma peça intimista feita pelo mesmo compositor que havia começado a grande revolução no gênero no fim dos anos 1920 e início dos 1930. Note-se que toda vez que Caetano Veloso — que sugeriu a Gal que gravasse a música — comete um samba há ecos de “Antonico” nele.

No desvio, mas vaidoso e elegante, fazendo questão de andar de terno, gravata e sapato de bico fino bicolor, morando quase de favor numa pensão “para rapazes” da Rua Gomes Freire, no velho Centro do Rio, Ismael Silva — que antes de morrer, em 1978, gozou de certo reconhecimento, por ter sido praticamente o único da turma do Estácio que sobreviveu para contar sua versão dos fatos — negou sempre a hipótese autobiográfica, afirmando, em diversas entrevistas, que nada que compunha tinha a ver com a vida dele. Nunca existiu Antonico nem Nestor nem viração, garantia.

Mas há coincidências demais entre bilhete e samba. Teria o compositor olhado por cima do ombro de quem de fato escreveu o texto no qual está expresso o desesperado pedido de ajuda?

B de balcão

jaguar
Hemingway escrevia de pé e nu. Guillermo Cabrera Infante, apenas nu. O carioca muitas vezes come de pé, embora vestido. Em especial na hora do almoço e na correria e no formigueiro do Centro da cidade. E não come, necessariamente, mal. Em certos botecos, a arte de roçar cotovelos no balcão, enquanto se mastiga um sanduíche de pernil com molho de cebola — sem sujar a camisa — é um prazer.

O melhor pernil está no Opus, pequeno bar na sassaricante Rua Gonçalves Dias, depois da Colombo e à esquerda de quem vai ao Mercado das Flores. Um bar estreito e comprido, com tamboretes que, ao freguês tomar assento, deixa a metade da bunda de fora. Daí a preferência pela parte da frente, quase se misturando ao movimento da rua. Cuidado: no teto, abacaxis e laranjas pendurados.

Peça o sanduíche de pernil “molhado” no pão canoa. O segredo, dizem, é o molho, cuja receita é segredo. É, sem favor, um dos melhores do Rio. Há as opções com queijo ou abacaxi. A iguaria será preparada — modo de dizer, cortado o pão, fatiada a carne — a sua frente. Essa é uma das vantagens do balcão, total transparência. Para beber, sucos de frutas; o chope, claro ou escuro, é honesto. Evite o xixi por ali: o banheiro fica no sótão, ao qual se chega por uma escada mui íngreme, mais adequada a um submarino.

O cachorro-quente de linguiça no pão francês com molho — uns 600 são vendidos por dia — é a especialidade do Café Gaúcho, desde 1935 na Rua São José, com vista para o Buraco do Lume (que a prefeitura insiste em chamar de Praça Mário Lago). De bobeira no Rio de Janeiro, o escritor Reinaldo Moraes (que é o mais paulista dos seres humanos) gostou tanto do sanduíche e das imediações, que resolveu conhecer todos os buracos da cidade. “Com lume ou sem lume”, decretou ele.

Outra pedida no Café Gaúcho é o bolinho de carne (que fica melhor com pimenta) servido pelo mais popular atendente da casa, o Sorriso. É um dos poucos locais no Centro que ainda mantém a tradição do cafezinho na xícara de louça e pires de alumínio. Tudo no balcão, naturalmente.

O cartunista Jaguar, um campeão dos balcões cariocas, dono de calos no cotovelo de tanto debruçar-se em legítimos mármores dos mais memoráveis botequins, ensina as vantagens do exercício de beber e comer em pé: você é servido mais depressa, fica mais fácil driblar os chatos, pode-se escolher o tira-gosto de melhor aparência, filar uma lasquinha da porção de presunto de perna e fiscalizar, num espichão de pescoço, se o cara está tirando direito o chope. E, não por último, conservar a silhueta sem barriga.


Alvaro Costa e Silva, o Marechal, é jornalista e escritor. Os textos publicados nesta edição fazem parte do livro Dicionário amoroso do Rio de Janeiro, que integra uma série de livros da editora Casarão do Verbo, em que escritores residentes nas 12 sedes da Copa do Mundo retratam suas cidades em forma de verbetes.

Ilustração: Nicholas Pierre