De Escritor para Escritor | Amilcar Bettega

1. Feira do Livro de Porto Alegre, há muito tempo: lutando visivelmente contra a timidez, um jovem levantou a mão para fazer uma pergunta ao célebre escritor que acabara de palestrar sobre o seu ofício. Desejava saber que conselho o escritor poderia dar a alguém que quisesse escrever. “Desista enquanto é tempo”, foi a resposta, mais preocupada em arrancar alguns risos da plateia, me pareceu, do que em ser precisa ou, no mínimo, respeitosa.

2. Hoje talvez eu enxergasse numa resposta dessas um pouco mais do que o cinismo evidente do posudo escritor, quem sabe uma maneira (pouco gentil, é verdade) de se desvencilhar de uma questão impertinente.

3. Escrever é coisa muito pessoal, cada um tem um jeito de fazer, o que serve para mim pode não ter importância para você. Por isso, os conselhos para quem está começando a escrever são sempre meio inúteis e, às vezes, se seguidos à risca, francamente prejudiciais.

4. Por isso, talvez o melhor seja: se quer escrever, bem, escreva! O que mais posso dizer? Escreva, comece. Só assim você vai descobrir o seu jeito. Na verdade, os escritores passam a vida tentando descobrir o seu próprio jeito de escrever. Seus livros são o resíduo desta tentativa.

5. Acho que por aí me aproximo de uma certa ideia do que pode ser (para mim) a escrita: uma busca, um caminho, uma estrada, uma viagem. É no percurso que a coisa acontece. No percurso mesmo, e não através ou por causa dele. É pelo durante que eu, você, a gente pode chegar — se um dia se chega a alguma coisa. E aqui é preciso ser claro. Este “chegar a alguma coisa” não tem nada a ver com o fim, com o “onde” se propôs a chegar quando se iniciou a viagem. Porque, afinal, é isto que estou querendo dizer: escrever é tentar chegar, sabendo que o chegar não é importante. 

6. Se o fim não importa, um dos caminhos mais fáceis para o equívoco é pensar a coisa em termos de tema. “Ah, vou escrever sobre isto, ou sobre aquilo.” Não. Cuidado com os textos sobre alguma coisa. E aqui eu já estou dando conselho, o que não me agrada, mas tudo bem, adiante: a questão é que quando o escritor escreve sobre algo, o principal já se perdeu. Perdeu-se antes mesmo de ter sido buscado.

7. Quem escreve sobre, pressupõe uma posição superior. Escreve de cima, de fora, faz tese. Quem escreve sobre, escreve para comprovar o que já sabe, ou para convencer o leitor da sua (do autor) verdade ou, na situação mais fraudulenta, para que o leitor reconheça a sua (do leitor) verdade, para que o leitor comprove o que ele próprio já sabia.

8. Não é possível trapacear na literatura. O que eu quero dizer com isto? Que fica muito evidente quando um escritor não está envolvido até a medula com o texto, quando ele joga para a torcida (que pode ser o mercado ou a crítica ou a própria vaidade — a claque é ampla), ou seja, quando ele está fora. Se o escritor não estiver inteiro ali dentro, o texto não tem verdade, ele não acontece. Claro que estar inteiro não tem nada a ver com contar a sua vida ou coisa deste tipo. Mas trazer a ficção desde dentro de si. O cérebro do escritor são suas entranhas.

9. E por aí chego em outro ponto que me parece importante: escrever ficção não é uma atividade puramente racional. Há uma (grande) parte de intuição (instinto) envolvida. Não basta o raciocínio lógico, as entediantes relações de causa e efeito. Na literatura o conhecimento não nos é dado por uma via racional — e neste “nos” estão incluídos leitor e escritor —, ao contrário, ela, a literatura, dá acesso a um tipo de conhecimento que não é alcançável pelas vias racionais. E ela só é justificável, só vai ser literatura, se oferecer este acesso.

10. Concordo, isto até pode parecer pouco claro, talvez até sem sentido. Mas é assim mesmo, as coisas que envolvem a escrita são bem pouco claras e, convenhamos, sem muito sentido. Afinal, por que alguém escreve se não tem ninguém pedindo ou esperando que ele escreva, se ninguém vai pagar pelo que escreve, se ninguém ou — no máximo — quase ninguém vai ler o que ele escreve?

11. Escreve-se por teimosia também. Então me parece que se alguém quer escrever, qualquer conselho que se dê será irrelevante. Quando, há muito tempo, numa Feira do Livro de Porto Alegre, perguntei a um célebre escritor o que ele poderia dizer a quem desejava escrever, talvez eu ainda não soubesse ou não tivesse consciência, mas ali já era certo que eu iria escrever. Tivesse o escritor dito “desista” ou “insista”, teria sido o mesmo. Cada um diz o que quiser, cada um ouve o que quer.


AMILCAR BETTEGA nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor dos livros de contos Prosa Pequena (2019), Os Lados do Círculo (2004, vencedor do Prêmio Portugal de Literatura — atual Oceanos), Deixe o Quarto Como Está (2002, ganhador do Açorianos de Literatura) e O Voo do Trapezista (1994).

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