Crônica | Ronaldo Correia de Brito

Assombração de Carnaval

Ilustração: Simon Taylor
Carnaval


Ninguém mais alude à porta sul do Recife, antiga entrada da cidade para quem viesse do continente. Os lugares mudam seus nomes, são esquecidos e naturalmente apagados da história, sofrem demolições ou se transformam por conta de reformas, quase sempre equivocadas. A Casa de Badia, no Pátio do Terço, foi erguida num espaço onde se presenciou a resistência à presença holandesa, o assassinato de Frei Caneca, os movimentos abolicionistas e os avanços da Belle Époque, que tantos estragos causou nas fachadas dos sobrados e na vida de nossa gente. Assimilou-se definitivamente a cultura ocidental, tornando irreconhecível o que no começo era apenas uma ilha estreita, “metade roubada ao mar, metade à imaginação”, como escreveu o poeta Carlos Pena Filho, brotada entre águas de rio e oceano, onde pescadores e navegantes se arranchavam. Não desejo lembrar a cidade Maurícia, que num curto tempo de 24 anos se abriu ao comércio, ficou cosmopolita, falava vários idiomas da Europa e de outros lugares do mundo, ganhou prédios, pontes e saneamento, conheceu relativa liberdade de culto, recebeu judeus que fundaram a primeira sinagoga das Américas e viviam fora de guetos ou judiarias. Nem falar do Recife inventado por Gilberto Freyre, Joaquim Cardoso e Ariano Suassuna. Minha paquera sempre foi com o Recife caribenho, carnavalesco, dos cultos afros, um quilombo urbano sobrevivendo à desigualdade social, ao preconceito e à repressão.

Foi na casa de Maria de Lourdes da Silva que eu vi. Até morrer, Badia costurou para clubes, blocos, troças e escolas de samba do carnaval recifense e recebeu agremiações em sua casa, nos dias de festa. O Pátio do Terço concentrou a maior população negra da cidade, até a década de quarenta do século passado, tornando-se um polo irradiante da cultura e religião das nações africanas.

Vi mesmo ou apenas sonhei? Lembro de ter encostado o flabelo em forma de máscara, numa das paredes altas da casa, o telhado a perder de vista. Sentia-me exausto após percorrer ruas e becos à frente do bloco, carregando o abre alas que eu mesmo havia criado. Na época, não conhecia a mulher que franqueava suas portas ao Bloco da Saudade, ofertando mesa de frutas tropicais, água, refrescos, mungunzá, cocadas e bolos. Tudo de que os brincantes mais precisavam para recompor as forças gastas no desfile pelos bairros do Recife, Santo Antônio e São José.

— Essa é Badia, me falaram, quando ela passou com uma bandeja.

— Ah!, exclamei.

Olhei curioso a mulher num vestido estampado, recebendo os desconhecidos com a nobreza de uma grande dama. A casa velha ameaçava ruir, soterrando seu bocado de história. Havíamos entrado pelos fundos, numa espécie de pátio coberto ou terreiro. Imaginei que ali dentro se celebravam os orixás e, um pouco mais adiante, na Igreja de Nossa Senhora do Terço, os santos do catolicismo.

— Posso entrar na casa?, perguntei ao diretor do bloco.

— Acho melhor, não.

Se ele tivesse insistido para que eu entrasse, desvelando portas, cômodos e os mistérios que eu imaginava existirem lá dentro, em meio às relíquias de uma África salva do cativeiro, talvez eu me contivesse entre fatias de abacaxi e bananas, risadas bêbadas e acordes arrancados de bandolins e violões. Mas, a proibição me aguçava os sentidos, me empurrando à procura de experiências novas.

— Essa era a casa das tias Sinhá e Yayá, aonde Badia chegou recém-nascida, em 1915, trazida pelas duas pretas. Cochichou em meu ouvido o diretor, que arranjara a recepção a troco de nada.

— Sei, disse balançando a cabeça em sinal afirmativo, com vergonha de confessar minha ignorância sobre a história da cidade.

Pedi licença para me servir, rodeei a mesa e, sorrateiro, invadi o espaço sagrado da casa. 

Havia um corredor comprido, com estandartes e retratos emoldurados nas paredes, cadeiras capengas, portas e janelas semicerradas, interditando os olhares curiosos. Empurrei uma banda de janela e descobri dois meninos, um branco e um negro, deitados. Aparentavam nove meses. Gordos e risonhos, se debatiam na cama, em meio aos lençóis. Achei que fossem gêmeos, apesar das cores diferentes de suas peles. Fiquei um tempo contemplando a aparição. Quem largara dois bebês desprotegidos, ao léu da casa velha? Eles pareciam tão brincalhões e travessos, e tinham pregado uma bela peça no folião bisbilhoteiro. Envergonhado, botei para rir e saí de mansinho. Desejava esquecer o assombro. Não havia álcool em minha pneuma, nada que me condenasse num teste de bafômetro ou fizesse imaginar que eu tivera uma alucinação.

Emburaquei casa adentro. Filtrados pelas paredes grossas, sons de marcha anunciavam que o bloco estava de partida. Pensei em retornar ao pátio, mas fora contaminado pelo desejo de vasculhar estranhezas. Mais estandartes e retratos antigos, precariamente iluminados por lâmpadas incandescentes, de poucos watts. Escutei vozes sussurradas e risinhos. Caminhei na direção de uma saleta e vi três mulheres em volta de uma mesinha redonda e de uma garrafa de cachaça. Bebiam em pequenos copos. Negras e velhas, elas vestiam blusas e saias longas, semelhando os trajes das mães de santo. 

Olharam para mim sem surpresa. 

— Quer?, me ofereceram a bebida.

— Obrigado, mas não bebo cachaça.

As três riram do meu acanhamento. Uma delas comentou:

— Você não sabe o que perde.

Sei que perco nuances de um Recife de belezas e armadilhas. Ao invés de abrir-me ao vento das marés e dos morros, fecho-me a maior parte do tempo.

— Quem são os dois meninos na cama?, perguntei.

— Ah! Os meninos.

— O senhor viu?

— Vi. 

Elas gargalharam alto e entornaram a bebida goela abaixo.

— Se o senhor viu é porque nem tudo está perdido.

E beberam mais cachaça, muitas talagadas, rindo descaradas do meu rosto surpreso, sem alcance para a felicidade que elas sentiam. 


Simon Taylor é desenhista, designer gráfico e diretor da Ctrl S Comunicação. Nascido em Curitiba em 1974, trabalha em jornais paranaenses desde 1996. É autor dos livros Charge agora... ou cale-se para sempre! (2013), Meus cases de sucesso (2014) e Sketchers do Brasil (2016). É vencedor de diversos prêmios Sangue Bom do Jornalismo Paranaense. Vive em Curitiba.

Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico, nasceu em Saboeiro (CE). Foi escritor residente da Universidade de Berkley (Califórnia), participou de diversos eventos internacionais, como a Feira do Livro de Bogotá, o Festival Internacional de Literatura de Buenos Aires, o Salon du Livre de Paris e a Feira do Livro de Frankfurt. É autor, entre outros, dos livros de contos Faca (2003) e O amor das sombras (2015) e do romance Galileia (2008), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Vive no Recife (PE).