Contos | B. Kucinski

O sofá

Ilustrações: Theo Szczepanski
O Sofá


Estavam recostados no sofá, quase se tocando, mas sem se tocar; o sofá no qual fizeram amor na urgência da primeira vez e de tantas outras; ele sentindo a mesma urgência, ela fingindo que lia. Não transavam havia dois meses. Ele estendera hesitante o braço direito ao longo do encosto, sentindo-se como um rapaz tímido que vai namorar a primeira vez. Ela dera um salto, como se tivesse sido ejetada por uma mola. E falou o que falou. Depois se arrependeria, mas o estrago ficou.

Isso foi há cinco dias. A frase o penetrou como uma punhalada. Estava ansioso pela interpretação do analista.

— Conte como foi.

— Começou um dia antes. Ela tinha chegado da tal terapia e eu perguntei se tinham conversado sobre a razão de não transarmos há tanto tempo. Ela respondeu que não ia fazer sexo com quem não podia lhe dar um filho. Queria a separação. Disse isso assim, sem meias palavras. Naquela noite, custei a pegar no sono. Mas o pior aconteceu no dia seguinte, na terça de manhã. Estávamos no sofá, ambos calados, eu tentei me aproximar, ela se levantou e disse que preferia se masturbar a fazer sexo comigo, e que já tinha feito isso muitas vezes, e que muitas amigas dela, sol - teiras e casadas, se masturbavam. Fiquei arrasado, perdi a fala, na hora levantei e saí, fui andar, não sei quanto tempo andei por aí, relembrei os anos que vivemos juntos, tentei entender se de re - pente ela se apaixonou por outro, ou se a diferença de idade começou a pesar, eu indo para os 60, ela mal chegando aos 40; ela já havia afastado discretamente nossas camas, assim, bem pouquinho, como se não fosse nada; nessa noite dormiu em outro quarto; agora estamos assim, sem nos falar, como estranhos. Ontem reclamei, ela não podia ter dito aquilo a um companheiro sexualmente ativo e ela respondeu que não era bem assim, foi nervosismo, ainda estava muito tensa, e se desculpou, mas insistiu que queria ter filhos, que estava passando da idade limite.

— Você acha que esse é o verdadeiro motivo?

— Prefiro achar que é, embora em treze anos ela nunca tenha dito isso, ao contrário, quando decidimos morar juntos e eu falei da minha vasectomia, ela se mostrou aliviada; não precisaria tomar pílula; não queria interromper a carreira para cuidar de criança; não queria ter filhos de jeito nenhum, assim como não quis do primeiro casamento, disse isso várias vezes.

— E por que você acha que agora ela quer?

— Não sei, pode ser essa coisa da idade limite, isso deve mexer com a cabeça das mulheres, e pode ser pretexto, ontem ela avisou que não dormiria mais no apartamento e não dormiu mesmo. Foi quando eu me dei conta de que a separação estava consumada. Hoje apareceu pela manhã e eu disse a ela bem claro que o apartamento era meu e só meu, era tudo o que eu tinha e dele não ia abrir mão. Foi a primeira vez que falei duro. O apartamento já era meu quando passamos a viver juntos e o mobiliário também, inclusive geladeira, fogão, tudo. E todas as despesas da casa eu sempre paguei, ela nunca entrou com nada, embora ganhe bem. Acho que hoje o salário dela é maior do que a minha aposentadoria; mas ela não entra com um tostão nas despesas, tem sido assim, todos esses anos.

— Você parece surpreso, mas ela vinha dando sinais...

— Talvez eu não quisesse ver, mas isso de não querer transar é recente...

— Como começou?

— Começou com ela chegando sempre depois das dez, muito estressada, ou assim parecia, dizia que a pressão na prefeitura estava insuportável, que havia uma luta interna pesada, estava num fogo cruzado, precisava trabalhar o dobro. Tomava uma ducha e caía na cama. Nos fins de semana, saía com as amigas e voltava tarde. Eu fui ficando mal, a abstinência sexual me afeta demais, me sentia humilhado, mas achava que isso ia passar, assim que ela fosse contratada como concursada. 

— E antes dessa fase, como era?

— Antes... Deixe ver... Teve essa viagem ao Rio, que eu já contei, a crise de pânico dela na porta do avião, tão forte que não embarcamos... Antes disso, bem, antes disso, no ano passado houve um episódio estranho, eu não dei atenção, mas depois do que aconteceu esta semana, fico pensando... Ela foi a Curitiba visitar a irmã, telefonou da rodoviária assim que desembarcou, mas não apareceu na casa da irmã; as horas se passavam e ela não chegava, o celular dava fora da área ou desligado. Só apareceu na irmã tarde da noite. Ela nunca me explicou... Enfim, pode ter sido neurose minha, mas hoje eu vejo que eram sinais... No começo do mês, pediu para eu assinar um documento no cartório atestando uma tal de união estável. Eu perguntei o motivo e ela disse que era para o concurso da prefeitura, uma formalidade, mas em retrospecto eu me pergunto se já não era um preparativo para a separação; esse pensamento me perturba muito... Eu sempre fiz as vontades dela. Paguei o curso de mestrado lato-senso que ela fez, em administração. Nunca neguei nada a ela. 

— Como se você fosse marido e pai ao mesmo tempo; ela foi tua aluna, certo?

— Sim, pela idade podia ser minha filha, aliás, a Adriana, do meu primeiro casamento, é só dois anos mais velha. Você fala em marido e pai ao mesmo tempo, o fato é que eu sou louco por ela, ainda sou, nossa vida sexual sempre foi intensa, até essas coisas começarem a acontecer. Talvez eu tenha errado ao não dar mais atenção à carreira dela, aos problemas que estava enfrentando na prefeitura.

— E agora, como vai ser?

— Não sei, não consigo me ver separado dela; se ela chegar amanhã propondo a reconciliação, dou o dito por não dito. 

— É a tua esperança?

— É o que eu mais quero. Chegar ao apartamento e encontrá-la no sofá, me chamando para sentar ao seu lado, pedindo talvez meio sem jeito para a gente recomeçar... Torço tanto por isso que preparei uma fala, para não tripudiar, não humilhá-la...

— Bem, nosso tempo acabou; nos vemos na segunda, certo?

Finda a sessão, ele deu muitas voltas antes de se dirigir ao edifício, já ao anoitecer. Era como se quisesse postergar o retorno, prolongar o mais possível a esperança na reconciliação, dar a ela mais tempo para mudar de ideia. Tentava imaginá-la no sofá, aguardando-o, amorosa e arrependida.

Estranhou o sorriso cínico do porteiro. Ao abrir a porta do apartamento, o susto: não havia sofá, nem mobiliário algum; o apartamento fora completamente esvaziado. Ficaram seus livros de astronomia, empilhados no piso do escritório e suas roupas, amontoadas no armário embutido. Naquela noite, dormiu no chão.


A depressão de José Roberto


A Depressão
Depois que a mulher morreu, José Roberto não mais saiu de casa. Os amigos telefonavam, não atendia; telefonavam outra vez, não atendia; deixava tocar, tocar, tocar, até desistirem. Não foi mais ao bar do Venâncio, nem à pelada na praia. De começo, sentiram a falta do Robertão, como era chamado, depois o esqueceram.

Passava os dias na rede, contemplando o quintal, tentando entender como era possível a mulher sumir de sua vida tão de repente, amaldiçoando a doença e filosofando sobre a fragilidade da existência. No piso da varanda, ao alcance da mão, largou a garrafa de pinga, uma jarra d´água e dois copos. Não chegava a se embriagar; bebericava. Só saía da rede para pegar um pão ou uma banana na cozinha — ou para ir à privada.

Sua única companhia era a gata Margô. O bichano encolhia-se ao pé da mureta da varanda e ali se deixava ficar, ronronando. À tardinha, sumia. Ia caçar seus ratos ou namorar. De manhã estava de volta. Aninhava-se de novo junto à mureta e ali permanecia. Margô era uma British Blue, raça rara e agressiva. A mulher a recebera agonizante de um morador de rua. Seus pê- los estavam calcinados e ela mal conseguia respirar. Tinham posto fogo nos dois, no morador de rua e na gata. Durante dois anos a mulher tratou-a como filha. Trágica ironia. A mulher morre consumida por um câncer, e a gata sobrevive, lustrosa e gorda. Tão viva que mesmo de dia suas pupilas amarelas faíscam de dar medo.

Em homenagem à mulher, José Roberto decidiu premiar a gata. Toda tarde, um pires de leite. Margô deixou de sair. Dava apenas uma escapada breve à noite, para fazer sua higiene e retornava. Não arredava do pé de José Roberto, mais fiel que um cão. Ele passou a conversar com a gata. Falava da mulher, rememorava episódios, as viagens a São Paulo, as rusgas, sempre terminadas na cama; as broncas, quando voltava bêbado do bar do Venâncio. Margô, vez ou outra ronronava. Só reagia quando ele pronunciava o nome da mulher. Era falar Vera, o bigode da gata se mexia e seu torso peludo se eriçava.

Uma tarde, não trouxe o leite da Margô. Tinha acabado o leite na geladeira. A gata se foi e não mais voltou. Passaram-se dias e nada da gata aparecer. José Roberto sentiu falta, viu-se duplamente abandonado, primeiro pela mulher, agora pela gata da mulher. Sua depressão piorou, desleixou ainda mais; restos de pão espalhavam-se por debaixo da rede. Deu de beber além da conta.

Até que apareceu o camundongo. Pequenino, menor que um pãozinho de padaria, saiu de um buraco na touceira das bananeiras e veio mordiscar as migalhas de pão. Um ratinho cinza, nervosinho como são os camundongos. José Roberto quieto, só acompanhando com o olhar. O bichinho, arisco, logo voltou para o seu buraco. No dia seguinte apareceu de novo e demorou-se mais.

No terceiro dia, José Roberto trouxe da geladeira um restinho de queijo ralado e soltou no chão, bem perto de si. O ratinho veio chegando, cheirando o queijo, o rabinho empinado, os bigodes tremulando, comeu, gostou e ficou por ali, como quem espera mais. José Roberto disse por hoje é só, volte amanhã. E assim foram se dando. Até que o ratinho passou a comer da sua mão. Ficaram amigos.

José Roberto achou por bem batizar o rato: Sócrates. E passou a conversar com Sócrates, da forma como antes conversava com a Margô. Contava histórias da sua mulher, de como a conheceu, dos ciúmes dela, as brigas, ao voltar bêbado do bar do Venâncio, as mesmas histórias que contara à gata e outras mais. Passava horas falando, rememorando, deitado na rede, com Sócrates no colo.

Numa tarde quente e abafada, quando Sócrates ciscava no piso da varanda, um vulto surgiu de repente do nada, saltou sobre o ratinho e vapt, abocanhou-o. Era Margô. A gata prendeu-o entre os dentes afiados e o foi arrastando pelo chão, esmagando seu corpinho que se debatia em desespero.

José Roberto pulou da rede a tempo de ver o rabinho do Sócrates saindo da boca sanguinolenta da gata. Furioso, desferiu um violento pontapé na gata que a pegou na barriga e a atirou longe, em meio a um miado curto e grosso. Em seguida, José Roberto chutou tudo o mais em sua volta, a garrafa de pinga, a jarra d´água, os copos e o pires da Margô que ainda estava por ali. Depois, arrancou a rede dos ganchos, fez dela um chumaço e o atirou na direção da touceira de bananeiras. Foi pra sala, pegou o telefone e discou o número do bar do Venâncio.


B. Kucinski é jornalista e professor aposentado de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP). Autor de obras sobre economia, política e jornalismo, foi assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. O romance K: Relato de uma busca, que marca sua estreia na ficção, foi amplamente elogiado e comentado pela crítica. Kucinski também é autor do livro de contos Os visitantes. Vive em São Paulo (SP).