Conto | Santiago Nazarian

Maldita primavera

O menino caminha nos trilhos. Como se seguisse o curso de um rio, as linhas do mapa, em linhas certas, impossível se perder. Ao seu lado, muros pichados, depósitos abandonados, ele não conhece muito bem aqueles cenários, mas sabe que, com a exatidão dos trilhos, poderá se reencontrar. Refazer os passos. Voltar atrás como se nada tivesse acontecido, porque nada acontece de fato. A vida é só uma repetição de fracassos, ele já sabe nessa idade. Então segue em frente planejando como poderá voltar. Segue torto em linhas retas.

As luzes piscam acima, postes prometendo iluminar seu caminho, mais ameaça do que abrigo. A primavera. Noites quentes e tardes ainda escuras. Finais de tarde alaranjados tremeluzindo em cupins. Pragas saindo de casa. Ele odeia essa época do ano, em que tudo é perecível e ainda não se pode se relevar na descartabilidade do verão. Tudo irá apodrecer. Primavera alergênica. Sua pele coça. Ele segue os trilhos. Conta os passos e calcula quanto tempo tem até o jantar.

Mudou-se há poucos meses, novamente. E a cidade parece que já esgota suas possibilidades. Mudou-se há poucos meses e as cidades parecem todas as mesmas, o destino. Não se afastar muito de casa. Ajudar no almoço. Voltar para o jantar. A mãe segurando uma coleira curta pela incapacidade de adestrá-lo. Ele sendo um bom menino, nos trilhos. Ou apenas deixando de ser mau.

Chuta uma lata. Antes de chutar a lata, arremete o pé contra a lata e freia-se para ajoelhar-se diante dela, antes de chutar. Lata nova para sua coleção. Testa o alumínio. Sólido. Duro. Testa a própria força. Uau. Uma daquelas latas antigas... Há quanto aquela lata sólida de refrigerante estava ali? Reergue-se e fareja o ar como para determinar quanto tempo havia passado, se o jantar estava vindo, se havia uma tempestade-apocalipse-novidade a se anunciar. Nada. Os trilhos seguem de um lado a outro. E o menino só tem dois caminhos a seguir. 

Não. O menino tem muitos outros caminhos. Ele pensa. Se pudesse. Se tivesse seguido atrás no trilho, atrás, atrás, muito atrás, estaria com ela. Se virasse atrás, e à direita. Se virasse à direita, e esquerda, esquerda, esquerda. Bem, talvez não tantas, assim estaria indo em círculos. Mas nas voltas e viradas, estaria. Mudaram-se antes, como a mãe sempre fazia. A mãe o afastando das meninas. Diabos, tantos meninos sofrem com isso. Tantos meninos não conseguem, não querem, não tentam se aproximar do sexo oposto. Sexo frágil. A mãe o impedia. Ele se continha. Mas sentia o impulso por elas como um maquinista a lhe conduzir. Era seu destino. Ele era menino afinal, por mais que a mãe tentasse castrá-lo. 

             Ilustrações: Marciel Conrado
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Se ele não dependesse dela, se ainda não dependesse de mesada. Se pudesse fazer as próprias escolhas, e viver uma vida de adulto... viveria. Ah, se pudesse. Sente as moedas no bolso. A nota de dois enrolada. Calcula mentalmente quanto daria... Só até a próxima esquina, talvez. 

O menino sai dos trilhos. Aquela reta não o leva a nada. À esquerda, apenas uma esquerda, sem círculos, há uma fenda, uma rua que parece aberta, parece habitada e ele sabe que ela o levará a algum lugar, antes do jantar. Não é muito civilizado, ainda é a poucos passos dos trilhos do trem, mas já dá a uma razoável venda, um bar. Uma placa lê-se “Pensão para Moços” e ele se pergunta se é moço, se é um prostíbulo, se aquilo é um lar e ele poderia de fato viver lá. Bem, não com as moedas que tem no bolso. Mal viveria a próxima refeição. Oh, uma padaria. O menino entra e espia.

“Pois não?” a pergunta do padeiro já é um pouco inquisidora. O padeiro o examina como se ele não devesse estar ali. O menino caminha até a vitrine um pouco mais chacoalhante do que o natural, para fazer as moedas serem ouvidas. Examina os doces e não tem um interesse particular por nenhum. Talvez o doce de leite daquele ali. Talvez o folhado desse. Quem sabe o creme, o sonho, o chocolate seja gostoso. Olha a vitrine de petit fours e há uma miniatura de todos, minimamente apetitosos. Um de cada, de repente, dez de cada, três, dois desses. Cem, duzentos gramas, cento e trinta está bom. Minha mãe está recebendo gente em casa, o menino pensa em dizer para não passar apenas por um menino guloso. Mas o padeiro nem perguntou. 

Com a bandeja de petit fours, o menino segue fora dos trilhos. Travessa adentro, cumprimenta transeuntes e matronas em janelas como se pertencesse de fato ali. Como se seus doces tivessem uma função. Como se a vida fosse doce. As matronas também preenchem as janelas como se interpretassem donas de casa de outras épocas e cidades, ele sabe que são prostitutas. Ele segue poucos passos até a próxima rua como se não fosse obra do acaso, como se o percurso sempre fora planejado. Como se esperasse desde o começo encontrá-la. Sentada na porta de casa, na calçada. Ele se junta a ela.

“Oi”, ele se senta com a bandeja de doces.

“Oi”, responde a menina.

“Tenho esses doces aqui...”, o menino diz desfazendo a embalagem da padaria, tentando parecer que não estava apenas desfazendo uma embalagem da esquina. “Parecem gostosos. Quer experimentar?”

A menina olha para os doces, olha para ele, suspira. “Ah, Marcelo... Seu nome é Marcelo?”

O menino sorri. “Sim, é Marcelo.”

“Ah, Marcelo, isso é doce vagabundo de padaria...”

Marcelo ri. Não esperava que a menina tivesse um paladar tão exigente. Sua prima, conheceram-se por alto há poucos dias, ali mesmo, num almoço de domingo, de família. Ele olhando para ela só de soslaio. A mãe olhando de soslaio para ele. Ele sabendo que seria impossível se aproximar, escutava a mãe o chamando para ajudar os homens, ajudar os adultos no churrasco. Ele sabia que voltaria para lá, planejava enquanto linguiças ainda estavam assando. Agora estão os dois em silêncio, sentados, comendo mini sonhos de chocolate achocolatado. Bombas de gordura vegetal hidrogenada. “Foi só o que consegui encontrar.”

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A menina dá de ombros lambendo o creme sabor chocolate. Ele olha para ela com aquela curiosidade que tem por todas as meninas. As pernas longas, lisas, finas, estendendo-se para fora do shorts, um arranhão logo abaixo do joelho, queria ter vivido aquela história. Gostaria de entendê-la, poderia conhecê-la melhor, nunca tem tempo o suficiente, sempre é tão rápido. Se pudesse congelar-se assim, naquela idade, com ela...

“Vamos sair para brincar?”, o menino pergunta inocentemente. 

“Pfff ”, caçoa a menina. Sempre tão madura para a idade. “Brincar é coisa de criança.”

O menino torce a boca e dá de ombros. Não sabe o que dizer. Pensa em sugerir “futebol”, mas futebol é coisa de menino. Amarelinha? Amarelinha é coisa de menina. “É modo de dizer. Pensei em procurar as cobras no mato da rua de trás.”

“Ai, você é doido”, ela diz; lindo, ele recuperou a ousadia, superioridade masculina, “que eu vou revirar o mato atrás de cobra.”

“Se você tem medo...”, ele diz.

“Não tenho medo. Tenho nojo desses bichos. Nem quero ver...” 

“Eu quero. Queria ver se tem cobra mesmo... Catar umas. Vai, é como um zoológico.” 

“Credo.” 

“É só ter cuidado. Cavucar as tocas com um pau. Botar pra fora. Não tem perigo. É só um bicho. Já fiz isso várias vezes....” 

“Você é doido.” 

“Só não tenho medo. A casa delas é aqui mesmo. A gente que veio invadir...”

A menina lambe o resto do creme em silêncio, sem entrar em divagações ambientalistas, e ele já sabe a resposta. Ela se levanta. “Tá, mas você que cavuca; eu vou ficar atrás, só olhando.”

Ele sabe que não há cobra nenhuma. Não há mais cobra nenhuma. São animais inventados, pelos adultos, para afastar as crianças da natureza. No mato só há entulhos. No mato, só camisinhas usadas. No máximo, escorpiões. Lacraias. Um beliscão materno condenando a criança a uma vida asfaltada. Ele veio para salvá-la.

Descem a rua passando por passantes, janelas, pensa em quantos estão lá a examiná-lo. A desconfiança dos homens, o olhar das matronas. “Então você prefere é sair com ela, boneco. Claro, todos preferem as novinhas. Mas, ah, se fosse homem de verdade. Ah, se desse conta. Hum, se me deixasse mostrar o que só uma mulher experimente é capaz...” É só um menino descendo com uma menina, diabos, um menino com sua prima, não há nada de mais. E não há nada de mais mesmo, nada aconteceu, mas as pessoas não sabem disso. As pessoas acreditam em bichos papões e cobras escondidas no jardim de casa. Ignoram o que cada um tem de escondido.

Entram num terreno baldio. Perfeito. A grama bate nos joelhos, bom. Poderia haver cobras aqui. Ele já encontra uma enxada. Segue decidido. Conhece a toca da anaconda. A casa da sucuri. A caverna da cascavel, da mamba negra, o templo da naja, termas da cobra d’água, castelo da cobra de vidro, paraíso dos ofídicos. Só não sabe aonde vai cavucar. A menina segue atrás, curiosa. Ela devia mesmo ter cuidado com os escorpiões. Essas pernas nuas. Essa infância a envenenar. O mato roçando em sua pele. A menina coça o final da coxa e ajeita a calcinha. Ele afasta o olhar.

Então ele avista. Um buraco no chão. Uma coruja no buraco. Ora, ele se aproxima. A coruja se infla, é uma toca. É, poderia haver cobras, se as cobras não fossem mortas. Ele encara a coruja. A coruja o desafia. É, poderia haver cobras. E as corujas comeriam as cobras. E as cobras comeriam as corujas. E estaria tudo certo. E seria apenas a natureza. E deus acharia bom.

“Mete a enxada nela, deve ter filhotes”, diz a menina. 

O menino se vira. 

“Vai, mete a enxada”, insiste a menina. 

O menino resiste. “É um ninho de corujas. Por que vou meter a enxada?” 

“Ai, esses bichos tem por todo canto... ”

E ele não sabe o que dizer; bichos por todo canto, isso é motivo para matar? Foi isso o que vieram fazer ali? Matar a natureza? Ou observá-la? Cavucar, revirar, atiçar, quem sabe, mas matar? Se essa é a única forma de continuar observando a natureza, se esse é o único contato que podem ter, não vai durar muito, não vai sobrar muito. Ele não está sozinho. Olha para a menina. Entrega para ela o poder de decidir. Larga a enxada e dá um passo ao lado.

A menina se adianta e segura o cabo.

Ele olha as longas pernas lisas dela saindo do mato, à beira da primavera alergênica, formigas, cupins ou escorpiões. Cobras, não.

A coruja se inclina. Ou a coruja se infla. A coruja recua. A coruja pia e ele puxa a menina pelo pescoço.

“Ai, solta, solta, está me machucando...” 

Ele a afasta da toca da coruja, longe da enxada, num canto do terreno. 

“Calma, calma, não vou te machucar.” 

“Me solta, Marcelo, ai...” 

“Calma, tenho uma coisa pra você...” 

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Mas a menina se debate e não quer nada dele, se debate demais. São aquelas penas e joelhos e cotovelos em movimento. As pernas arranhando em picões. Porra, por que as meninas têm de se achar sempre tão superiores? A curiosidade não se aguenta mais. “Vamos brincar de outra coisa, tá? Muito mais legal.”

“Me solta, Marcelo, vou falar para minha mãe. Para...”

E com ela se contorcendo ele nota o relevo de seus seios. Com ela se contorcendo ele não nota o relevo de seus seios. Ele nota seu peito ainda assexuado, já com um sutiã, denota suas intenções. Ela já está pronta. Ele quer investigar mais. Que se aprofundar, ir abaixo, uma cordilheira lisa até uma caverna desdentada. Fique quieta, fique quieta. Se você ficar quieta é melhor. Nunca senti prazer em você se contorcer e gritar.

Numa jogada simples do braço a menina está no chão e Marcelo está sobre ela, exercendo seu peso. A menina ainda resiste, e ele bate a cabeça dela no chão, uma, duas vezes. Assim, ela amolece um pouco — meninas deveriam ser macias. Cabeça no asfalto, pernas escorrendo para a terra, ele escorrendo com ela entre capim-mombaça, panicum maximum, no canto de um terreno baldio.

Ele penetra. Ela sangra. Peso e pelos sobre algo tão insubstancial. Sente ossos se partindo, um recheio ralo. Não haveria espaço dentro dela para tudo o que ele tem a transbordar. Suor cola suas peles. A barba por fazer lixa o rosto dela como se fosse desfazer uma máscara, revelar algo, não há nada a esconder, nada a esconder. Não há máscaras, não há segredos, não há uma grande revelação por trás, por dentro, ele não descobre nada além daquela menina, tudo o que ele já sabia. Ela não tem respostas, nem mesmo muitas vontades. Continua se contorcendo por um bom tempo, mas cada vez com um menos vigor — nem como cedesse nem como se quisesse, como se estivesse cada vez menos lá. Muito fácil e muito rápido. Uma mordida no bico dos seios. Uma mão áspera no pescoço de garça. Aperta a garganta e a faz parar. Ela continua quente e latejante mesmo assim, elas latejam por um bom tempo. É a natureza. Por mais que se tente asfaltar... 

Marcelo levanta-se e olha para baixo. Fecha o zíper. A menina como um personagem de desenho animado, esmagado por um rolo compressor. Não, seu pulmão ainda infla. Palpita. Marcelo pega o tijolo ao lado e é um golpe rápido na lateral esquerda da cabeça. Pronto, nada mais a palpitar. Geleia orgânica. Ele sente o ombro. Um gosto azedo na boca. O cheiro pungente de seus próprios líquidos e os mosquitos o devorando vivo.

Marcelo volta pelos trilhos. A luz laranja dos postes ilumina seu caminho, estroboscópico pelos cupins. Espera não estar chegando tarde para o jantar. Se a mãe ainda estiver na cozinha, ele pode escapar para o banheiro, tomar um banho, sem ter de passar por ela. Pode dormir sossegado esta noite, ele vai ter tempo. E amanhã pensar no que fazer. É só seguir os trilhos. Voltar ao início. Como se seguisse o curso de um rio, as linhas do mapa, em linhas certas, impossível se perder. Porém Marcelo está cansado, ainda que saiba que a volta é sempre mais rápida do que a ida. Sente o peso dos anos, uma dor no joelho, está ficando velho para fazer isso. Coça picadas dos mosquitos. Sente seu próprio corpo fedendo. Os cupins grudam-se à sua testa, ao suor da careca. Maldita primavera. Amanhã começa o horário de verão.


Santiago Nazarian nasceu em São Paulo (SP), em 1977. É autor de diversos romances, entre eles Biofobia, Mastigando Humanos e Feriado de mim mesmo. Tem obras publicadas em vários países da América Latina e Europa. Em 2007, foi eleito um dos escritores jovens mais importantes da América Latina pelo júri do Hay Festival em Bogotá. Em 2017 lançou o romance Neve negra.