Conto | Paulo Paniago

Godofredo Testa, filósofo informal


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Morar em Brasília é o mesmo que viver em outro planeta, pensei, quando me mudei para cá, ainda jovem. Só me apropriei da cidade e tornei-a minha quando conheci Godofredo Testa e tive o que julguei ser uma ideia inovadora: fazer a biografia de alguém antes que ele se tornasse conhecido. Uma biografia diferente me colocaria numa posição privilegiada e o que diria nela a respeito de Godô, como passei a chamá-lo quando virou meu amigo, tornaria Brasília reconhecida por outras coisas que não a falta de esquinas ou o número gritante de cretinos por metro quadrado. Passaria a ser também uma cidade com pensadores de envergadura. Talvez houvesse, de minha parte, excesso de empolgação pelos louros potenciais que me aguardavam numa curva qualquer do futuro, mas estava disposto a fazer o investimento.

Godofredo Testa foi um filósofo informal, criador do clube Risíveis Anônimos, investigador de temas inusitados para a produção de ensaios tão originais quanto inéditos. Do modo como eu entendia, era questão de tempo até que ele fosse descoberto em escala nacional. Quando acontecesse, eu estaria preparado e a biografia, na reta final, faltando apenas um e outro ajuste. Propus, ele aceitou, não sem primeiro tripudiar um pouco: “Já inventaram esse negócio de fazer biografia de gente desconhecida?”, perguntou, irônico e torto como um sorriso, antes de arrematar com um punhal em minhas vértebras: “Não sabia, fico feliz. Em troca posso escrever a sua”.

Quando concebi a biografia do futuro e associei o projeto a Godô, sabia que alguma coisa poderia dar errado — por exemplo, ele se recusar a ter as ideias reconhecidas em larga escala, ou recuar, por temor de uma possível distorção ou por ser muito orgulhoso e por não querer os pensamentos compartilhados por todos, circulando entre pessoas mal intencionadas que não demorariam a distorcê-los. Se ele fracassasse, pelo menos no sentido mais rudimentar do que se entende por fracasso, ou seja, por ter se recusado a fazer sucesso, meu projeto de biografia iria ficar prejudicado e eu não tinha como simplesmente ignorar o risco. Claro, em última instância, poderia haver fracasso mesmo que Godô se empenhasse ao máximo, porque nunca se sabe com que cartas o destino joga. O que se pode dizer é que o destino é a banca e poucos saem com dinheiro do cassino da vida.

Contra ele pesava o fato de ter nascido e crescido em Brasília. Levaria mais tempo, portanto, a ser descoberto, a não ser que tivesse investido na carreira política e ficasse conhecido ao receber o prêmio que todo político local merece, embora poucos de fato recolham: um par de algemas. A capital não era, ainda, conhecida como grande celeiro de homens de ideias, talvez coubesse a Godofredo a primazia de mudar isso e mais um tema para ser explorado pelo meu texto, que faria referências aos frutos plantados muito antes por, sei lá, um Darcy Ribeiro. Frutos, sim, não sementes — desses paradoxos ia construir meu texto e o leitor seria convocado a inverter perspectivas de compreensão.

Eu havia chegado a Brasília há muito tempo. Tinha retido na memória o que esse imenso cenário de filme de ficção científica parecia naquela época: lugar de desterro para quem se perdeu nos confins da galáxia ou foi banido para a terra de ninguém. Tentava entender aquela cidade alienígena dando longos passeios a pé. Geralmente, depois que o sol se punha. Era quando o calor abrandava e a poeira parecia dar algum descanso, nem que fosse se tornando invisível. Andava a esmo, aguçava olhos e ouvidos para uma cidade maligna e indiferente. A sensação era a de que, ao me aproximar de um local, ele se afastava deliberadamente de mim.

A inteligência por aqui é tão escassa quanto é abundante a poeira e a corrupção, me disseram a respeito de Brasília, mas aquela era apenas uma das versões. Eu podia sentir os grãos se solidificando nas minhas narinas, como a formar um filtro que me impedisse de sentir o cheiro podre da cidade corrupta — me ocorreu que aquele era o único jeito de evitar contamínio ou sintoma de que também havia sucumbido. Talvez por isso tenham escolhido um lugar tão claro para fazer a capital, quem sabe o excesso de luz fosse capaz de dissipar um pouco o cheiro forte da carniça.

Conheci Godô durante pausa numa dessas caminhadas, ao tomar chá gelado para refrescar. Ele era o magricela encostado ao balcão daquela pizzaria de preços assustadoramente baixos, que se refletiam no sabor de papel do queijo e da massa. “O sonho de Dom Bosco encontrou o capitalismo para virar pizzaria”, ele disse, olhando diretamente para mim e referindo-se ao nome do lugar, que era pouco mais que um balcão fino e tinha ar de sujeira com gordura acumulada nos cantos a despertar o mesmo interesse que um trem descarrilado na Mongólia. Dom Bosco era o padre que havia sonhado em transferir a capital para o interior e ao mesmo tempo o nome da pizzaria, concorrida por causa do preço, não por conta da gordura que avançava para cima dos fregueses, à procura de poros para entupir, embora esse serviço extra e não necessariamente desejável estivesse embutido no custo da fatia.

A conversa girou em torno de assuntos triviais e outros nem tanto e foi exatamente essa característica, saltar para temas mais vastos e densos, que tornava Godofredo um sujeito diferente. Ele ia na contramão do pensamento — e isso, em vez de afastar todo mundo, fascinava e atraía. Godô não meditava sobre uma linha reta e natural — isso gera aquilo e em seguida aquilo outro — mas tinha, pelo contrário, uma espécie de pensamento quântico para produzir ideias. Era capaz de pensar a respeito de duas e três ou cinco coisas simultaneamente, não na sequência uma da outra. Se tivesse que escolher uma palavra para defini-lo eu usaria a óbvia, gênio, mas o lugar comum me irrita, de modo que ficarei com a expressão extravagante. Se bem que essa é passo anterior para aquele.

Do modo como enxergo, a informalidade e o riso, dois companheiros naturais, combinaram de se ajustar para dar origem a Godô. A disciplina que se requer para o riso é imensa, mas informal. “O que você leva a sério é o que você tem de pior”, ele me disse. A combinação de ambas era a base do seu sistema filosófico, embora ele se recusasse terminantemente a admitir que tinha um.

Começou a organizar reuniões de um grupo chamado Risíveis Anônimos: em vez de conversas triviais ou a respeito de lamúrias mútuas, ele os reunia para que todos rissem juntos. Nunca fui convidado. Acho que não passei pelo crivo da falta suficiente de seriedade. O riso era a forma religiosa de estar no mundo, sua única noção de sagrado. Godô era o sumo sacerdote, o papa do humor. Não se trata de tentar redenção pelo riso: é apenas riso e basta. Zero de transcendência, quando Godô ri. A humanidade deveria se sentir lesada. Por não ter sido convidado, eu nutria ressentimento, me afastava do lado leve da vida.

Enquanto isso, anotava frases que ele dizia e fiquei à espera do momento em que iria fazer algo realmente inovador que chamasse a atenção do mundo. Nessa hora lançaria a biografia, para a qual tinha título provisório, Vida e atribulações de Godofredo Testa, filósofo informal.

Acontece que Godô morreu antes disso acontecer, ou, eu diria, às vésperas desse salto, deixando meu título definitivamente no provisório. “Vou ao México pesquisar dois escritores e fazer um livro a respeito deles que vai mudar a compreensão da literatura, não só a mexicana ou a brasileira, mas a do mundo inteiro”, me disse, cerca de um mês antes, revelando uma megalomania que achei que era exclusividade minha e misteriosamente se recusou a declinar os nomes dos investigados. Achei que pretendia abrir uma filial dos Risíveis Anônimos naquele país. Desconfiei que os escritores poderiam ser Juan Rulfo e Carlos Díaz Dufoo, o filho, não o pai. Um conhecido, outro raro, ambos reticentes. Mas minhas desconfianças permaneceram sem conclusões à vista.

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Escritores?, estranhei. Mas Godô era dado a guinadas súbitas e a filosofia informal não respeitava fronteiras banais e acadêmicas. A indisciplina do riso era o guia, a Godô cabia apenas obedecer. Portanto, que viva México. Um país que ria da morte, no Dia de Finados, em vez de chorá-la. Será que no México se riram da morte de Godô, fiquei pensando, algum tempo depois que recebi a notícia de que o avião havia caído perto do aeroporto da capital. Acrescentei outra dor à desolação pela perda do amigo, porque vi morrer no acidente também o projeto da biografia. Me pergunto se Godô teve informalidade bastante e enfrentou a morte com um riso entre os dentes, mas diria que sim.

Depois me vem essa desconfiança de que a vida e as atribulações de Godofredo Testa nunca passaram das fantasias desvairadas de minha imaginação. Não existe Godô, nem Risíveis Anônimos, nem viagem ao México, sequer mortes violentas decorrentes de acidentes de avião. Existem dias longos, um muro descascado e deprimente no perímetro deste lugar onde vivo na companhia de tantos outros e os caras de branco a nos controlar os movimentos e em forte tentativa de mexer com nossas ideias, testando diferentes produtos farmacêuticos nessas cobaias que não têm a quem reclamar. O truque de esconder a medicação debaixo da língua não funciona mais comigo, eles fazem marcação cerrada demais e conferência bem minuciosa. A biografia de Godô tornou-se portanto um novo gênero de textos não escritos, a biografia mental. A cada dia, escrevo uma página ou duas e decoro todas as palavras para nunca colocar nem mesmo uma vírgula por escrito. Sei como preservar o essencial em conserva.

A vida aqui não chega a ser tão ruim e se torna especialmente interessante nos domingos em que meus filhos se lembram de trazer os netos para uma visita e eles parecem se divertir com as histórias que conto, a respeito da juventude do vovô Godofredo. Se não gostam, pelo menos aprenderam a disfarçar muito bem, os pequenos hipócritas. No fim das contas, penso se não é essa a principal herança que lhes deixarei.


Paulo
Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília (UnB). Autor de gaveta dos romances A selva lá fora, O nervo da vida, Só os canalhas são felizes, Homem no papel e Deriva, todos inéditos. Tem publicado Literatura brasiliense — No compasso das letras (2012). Em 2013, venceu o concurso de literatura Prêmio Cidade de Belo Horizonte (relativo a 2012), pelo livro de contos Quando termina, escrito em coautoria com Paulo Renato Souza Cunha. Vive em Brasília (DF).

Ilustrações: Gustavo Paim